São Paulo, sexta-feira, 24 de junho de 2005

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"CORAÇÕES E MENTES"

Documentário de Peter Davis de 1974 sobre a Guerra do Vietnã reestréia hoje em São Paulo

Filme revela do que os EUA são capazes

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

"Corações e Mentes" é napalm puro. Três décadas após seu lançamento, o documentário de Peter Davis, que reestréia no Cinesesc, continua sendo um dos mais brutais retratos da sociedade americana e do que ela é capaz de fazer, se tiver motivação e um bom punhado de balas.
Não importa se o nome da guerra é "do Vietnã" ou "do Iraque". Há um traço comum no comportamento dos americanos, em épocas distintas de envolvimento dos EUA em crises externas, que pode ser aceito como essencial -e que "Corações e Mentes" capta com precisão: a histeria diante de inimigos muitas vezes mais imaginários do que reais.
A Guerra Fria, ambiente do filme, foi um momento histórico em que esse perfil se manifestou de forma particularmente aguda. O medo de que o comunismo se espraiasse pelo mundo, ameaçando a hegemonia da cultura americana e a própria existência dos EUA como idéia, encontrava pouco respaldo na realidade.
Eric Hobsbawm, por exemplo, sugere que a URSS talvez não fosse uma ameaça real: "Pois hoje é evidente, e era razoavelmente provável mesmo em 1945-47, que a URSS não era expansionista e menos ainda agressiva nem contava com qualquer extensão maior do avanço comunista além do que se supõe houvesse sido combinado nas conferências de cúpula de 1943-45 [Segunda Guerra]", diz o historiador britânico em "A Era dos Extremos".
Mas o pesadelo comunista mobilizou os EUA durante décadas, tanto que, em nome dele, o país não hesitou em atropelar os próprios princípios que dizia querer preservar. Dentro de suas fronteiras, limitou as liberdades individuais para facilitar a caça aos comunistas. No exterior, apoiou regimes colonialistas, genocidas e antidemocráticos porque eram considerados estratégicos.
A base do discurso desmascarado por "Corações e Mentes" é justamente a defesa da "liberdade" e dos "valores ocidentais". Os sucessivos governos americanos que se envolveram no Vietnã revestiram a barbárie de diferentes figurinos retóricos. Como o filme mostra, porém, todos eles convergiam afinal para a comprovação da superioridade da civilização ocidental. Ao primitivismo pastoril dos vietnamitas, a potência americana contrapôs um extenso cardápio de bugigangas tecnológicas e ofereceu o modelo da sociedade de consumo abundante.
Os americanos defensores da ação no Vietnã também se julgavam superiores na capacidade humana de emocionar-se. Lá pelas tantas, um deles afirma que os asiáticos têm menos apreço à vida do que os ocidentais -repeteco da velha estratégia de desumanizar o inimigo para subjugá-lo e matá-lo à vontade.
Ao contrário do que parece, porém, "Corações e Mentes" não é um panfleto à Michael Moore. Sua sobrevivência para além da contestação simplória reside justamente em sua capacidade de investigar como foi construído o discurso que norteou a ação dos EUA. O resultado é a própria essência do ser americano no século 20 -e o que se vê não é bonito.
Os agentes da superpotência, em plena era da informação, não se esforçaram para entender o país ao qual diziam ajudar. Assim como os conquistadores espanhóis da América no século 16, os americanos no Vietnã agiram em nome de uma idéia cuja dissonância com a realidade só poderia ser resolvida por meio da matança. E também por meio da mentira, recurso que todos os presidentes americanos da época da guerra usaram para esconder do mundo e dos próprios cidadãos americanos os motivos, a extensão e a conseqüência do envolvimento do país no Vietnã.
Um milhão de mortos, porém, não bastaram. Nesta semana, o presidente Bush recebeu na Casa Branca o premiê do Vietnã, líder de um regime comunista de partido único, acusado de violar direitos humanos e liberdades individuais. Trataram de negócios.


Corações e Mentes
Hearts and Minds
    
Direção: Peter Davis
Produção: EUA, 1974
Quando: a partir de hoje no Cinesesc


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