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"CORAÇÕES E MENTES"
Documentário de Peter Davis de 1974 sobre a Guerra do Vietnã reestréia hoje em São Paulo
Filme revela do que os EUA são capazes
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
"Corações e Mentes" é napalm puro. Três décadas
após seu lançamento, o documentário de Peter Davis, que reestréia no Cinesesc, continua sendo
um dos mais brutais retratos da
sociedade americana e do que ela
é capaz de fazer, se tiver motivação e um bom punhado de balas.
Não importa se o nome da guerra é "do Vietnã" ou "do Iraque".
Há um traço comum no comportamento dos americanos, em épocas distintas de envolvimento dos
EUA em crises externas, que pode
ser aceito como essencial -e que
"Corações e Mentes" capta com
precisão: a histeria diante de inimigos muitas vezes mais imaginários do que reais.
A Guerra Fria, ambiente do filme, foi um momento histórico
em que esse perfil se manifestou
de forma particularmente aguda.
O medo de que o comunismo se
espraiasse pelo mundo, ameaçando a hegemonia da cultura americana e a própria existência dos
EUA como idéia, encontrava pouco respaldo na realidade.
Eric Hobsbawm, por exemplo,
sugere que a URSS talvez não fosse uma ameaça real: "Pois hoje é
evidente, e era razoavelmente
provável mesmo em 1945-47, que
a URSS não era expansionista e
menos ainda agressiva nem contava com qualquer extensão
maior do avanço comunista além
do que se supõe houvesse sido
combinado nas conferências de
cúpula de 1943-45 [Segunda
Guerra]", diz o historiador britânico em "A Era dos Extremos".
Mas o pesadelo comunista mobilizou os EUA durante décadas,
tanto que, em nome dele, o país
não hesitou em atropelar os próprios princípios que dizia querer
preservar. Dentro de suas fronteiras, limitou as liberdades individuais para facilitar a caça aos comunistas. No exterior, apoiou regimes colonialistas, genocidas e
antidemocráticos porque eram
considerados estratégicos.
A base do discurso desmascarado por "Corações e Mentes" é justamente a defesa da "liberdade" e
dos "valores ocidentais". Os sucessivos governos americanos
que se envolveram no Vietnã revestiram a barbárie de diferentes
figurinos retóricos. Como o filme
mostra, porém, todos eles convergiam afinal para a comprovação
da superioridade da civilização
ocidental. Ao primitivismo pastoril dos vietnamitas, a potência
americana contrapôs um extenso
cardápio de bugigangas tecnológicas e ofereceu o modelo da sociedade de consumo abundante.
Os americanos defensores da
ação no Vietnã também se julgavam superiores na capacidade
humana de emocionar-se. Lá pelas tantas, um deles afirma que os
asiáticos têm menos apreço à vida
do que os ocidentais -repeteco
da velha estratégia de desumanizar o inimigo para subjugá-lo e
matá-lo à vontade.
Ao contrário do que parece, porém, "Corações e Mentes" não é
um panfleto à Michael Moore.
Sua sobrevivência para além da
contestação simplória reside justamente em sua capacidade de investigar como foi construído o
discurso que norteou a ação dos
EUA. O resultado é a própria essência do ser americano no século
20 -e o que se vê não é bonito.
Os agentes da superpotência,
em plena era da informação, não
se esforçaram para entender o
país ao qual diziam ajudar. Assim
como os conquistadores espanhóis da América no século 16, os
americanos no Vietnã agiram em
nome de uma idéia cuja dissonância com a realidade só poderia ser
resolvida por meio da matança. E
também por meio da mentira, recurso que todos os presidentes
americanos da época da guerra
usaram para esconder do mundo
e dos próprios cidadãos americanos os motivos, a extensão e a
conseqüência do envolvimento
do país no Vietnã.
Um milhão de mortos, porém,
não bastaram. Nesta semana, o
presidente Bush recebeu na Casa
Branca o premiê do Vietnã, líder
de um regime comunista de partido único, acusado de violar direitos humanos e liberdades individuais. Trataram de negócios.
Corações e Mentes
Hearts and Minds
Direção: Peter Davis
Produção: EUA, 1974
Quando: a partir de hoje no Cinesesc
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