São Paulo, sábado, 24 de junho de 2006

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Livro-reportagem narra a dura vida das afegãs

"O Livreiro de Cabul", de Asne Seierstad, mostra que pouco mudou no pós-guerra

Livreiro do título acusou a autora de traição, ameaçou processá-la, mas preferiu assinar contrato para livro com sua versão dos fatos


EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL

Nascida em 1970, filha de uma mãe feminista e um pai socialista, a jornalista norueguesa Asne Seierstad não poderia, nem quis livrar-se das opiniões liberais que marcaram sua formação. Ao ver como as afegãs eram tratadas como cidadãs de segunda classe, Seierstad voltou sua pena para o homem que a acolheu em Cabul, para escrever um livro sobre uma família afegã, após a queda do regime Taleban. Foi acusada por ele de traidora, por retratá-lo como um "tirano", e de etnocêntrica, por alguns críticos, pelo viés ocidental com que observou os costumes afegãos.
"Eu não tento afirmar que meu ponto de vista é melhor ou mais justo. Mas acredito que é importante escrever sobre o sofrimento das pessoas. E acredito em direitos humanos universais. No Afeganistão, estes direitos são violados diariamente. Isto é tomar partido?", indaga a jornalista.
A resposta para pergunta acima pode estar no relato, com tons literários, dos três meses em que Seierstad conviveu com a família afegã. "O Livreiro de Cabul", best-seller já vendido para mais de 30 países, chega ao Brasil com chances de se tornar um novo "O Caçador de Pipas", romance com tintas autobiográficas de Khaled Hosseini, que também tem o Afeganistão como pano de fundo.

Livro-documentário
O livreiro do título é Sultan Khan (nome fictício), homem a quem Seierstad conheceu após meses cobrindo a guerra contra os talebans. A jornalista viu nele -um homem aparentemente liberal, que resistira aos comunistas e ao Taleban para manter sua livraria aberta- a oportunidade de revelar outra faceta do país, diferente da dos comandantes, soldados e vítimas diretas da guerra a quem já havia entrevistado.
"Uma família típica afegã seria analfabeta, estaria no campo, lutando para sobreviver, uma vida que não mudaria muito com a queda do regime.
Na família do livreiro os membros eram mais abertos, poderiam refletir sobre as mudanças no país etc. E, ao mesmo tempo, quando se trata de tradições, regras e costumes, eles eram típicos afegãos, embora tivessem mais dinheiro do que a maioria da população", diz.
Na casa do livreiro, Seierstad conviveu com sua esposa, cinco filhos e outros parentes, com quem dividia quatro cômodos.
Chegou lá com a "roupa do corpo" e, ao mesmo tempo em que sofreu com a burca ("aperta e dá dor de cabeça, enxerga-se mal através da rede bordada"), tirou proveito da indumentária para circular incógnita em ônibus, mercados, e até um banho público de Cabul.
Sem falar o dialeto persa da família, a jornalista pôde, por sorte, falar em inglês, com alguns membros. Anotou relatos sobre suas infâncias, casamentos e memórias da guerra. Jamais se intrometeu em conflitos, mesmo quando testemunhou o filho adolescente de Khan ser obrigado a trabalhar 12 horas por dia, sem poder estudar. Ou quando seu anfitrião decidiu "exilar" a primeira mulher no Paquistão, para casar-se com uma menina de 16 anos.
"De que adiantaria tentar mudar uma família afegã? Preferi ficar com minha boca calada e escrever o que ouvia e via.
Mas é claro que algumas vezes fiquei com vontade de gritar que algo era injusto. Mas não fiz isso, escrevi o livro ao invés."
A jornalista não só escreveu o livro, como partiu para uma ação mais concreta para ajudar os afegãos: doou US$ 200 mil (cerca de R$ 450 mil), parte dos ganhos com seu livro, para construir uma escola para 600 garotas nos arredores de Cabul.
Khan, cujo verdadeiro nome é Shah Mohammad Rais, ameaçou processar Seierstad, mas trocou o tribunal por um contrato com um editor norueguês, para um livro com o título "Eu Sou o Livreiro de Cabul".
"Ele que escreva o livro e os leitores vão julgar. É melhor do que tentar limitar a minha liberdade de expressão e mais democrático".


O LIVREIRO DE CABUL
Autora:
Asne Seierstad
Tradução: Greke Skevic
Editora: Record
Quanto: R$ 45,90 (320 págs.)


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