São Paulo, quinta-feira, 24 de junho de 2010

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Bagunceira na Bienal

Artista argentina Marta Minujin traz happening clássico a São Paulo e comenta potência política de sua obra durante a ditadura argentina

Sergio Goya/ Folhapress
A artista Marta Minujin em seu ateliê no bairro de San Cristóbal, em Buenos Aires

SILAS MARTÍ
EM BUENOS AIRES

Ela mesma abre a porta. Marta Minujin veste um macacão branco, que vai da cabeça aos pés. Mesmo na sombra, fica de óculos escuros, dois círculos negros envoltos pela cabeleira platinada.
É desse jeito que ela aparece em quase todos os retratos desde que despontou na cena da arte nos anos 60. Minujin é a imagem dela mesma, indissociável da sua obra.
"Sou sujeito e objeto", diz a artista argentina em seu ateliê, em Buenos Aires. "Faço arte por osmose, arte invisível, impossível, efêmera."
Ou nem tanto. Seu labirinto, de fato, efêmero, estará na próxima Bienal de São Paulo, em setembro. "La Menesunda", ou bagunça, foi uma sequência de situações bizarras que ela montou em 1965.
Eram 16 salas iluminadas por néons. Numa delas, televisores ligados no último volume. Na próxima, um casal fazendo amor. Depois, um balcão de cosméticos. Por fim, um consultório de dentista e um freezer lotado de tecidos e cheiro de fritura.
Sobrou só um filme disso tudo, que será exibido na mostra paulistana. Minujin também promete voltar a São Paulo com uma ação ao vivo. Ela não dá detalhes da performance e diz que nem mesmo os curadores da Bienal sabem do que se trata.
De qualquer forma, dá para adiantar que será absurdo, como tudo que fez até hoje.
Sem modéstia nem recato, Minujin se diz a inventora do happening na América Latina, talvez desconhecendo o que fez Flávio de Carvalho nos anos 30 ou Wesley Duke Lee três décadas depois.
Não importa. No mesmo ano em que Duke Lee levou seus desenhos eróticos ao João Sebastião Bar, no centro paulistano, Minujin convocou um grupo de artistas em Paris para intervir sobre suas obras feitas de colchões.
Terminou a performance ateando fogo a tudo, ao mesmo tempo em que libertava 500 pássaros e cem coelhos. "Faço a obra e o público é quem desarma", diz. "Tiro a gente da vida cotidiana."
Minujin então interrompe a entrevista para gritar num megafone. Passeia pelo ateliê dando ordens desconexas aos assistentes. Volta a sentar num sofá, no meio da balbúrdia de seu palacete neoclássico, e aponta na parede instruções para happenings.
"Tenho uma receita", resume. "Tudo tem que ser absurdo, tipo entre numa sala e beije todo mundo, repita a mesma palavra 50 vezes."

OBELISCO DOCE
São palavras de ordem para tempos difíceis. Todo o absurdo de Minujin, pelo menos no intervalo ocupado pelos excessos da ditadura argentina, parece voltado para combater com graça um estado de exceção e violência.
Na repressão militar do país, que foi de 1976 a 1983, Minujin fez uma réplica com pão doce do obelisco da avenida Nueve de Julio. Instalou um cartaz em praça pública, assinando a obra. Terminava tombando seu monumento, devorado pelo público.
É talvez sua obra mais política. "Fiz um falo para os militares, e eles não proibiram", lembra. "Eram tão burros que não enxergaram nisso um comentário político."
Passado o regime, Minujin entrou para a economia. Decidiu pagar a dívida externa argentina de forma simbólica, numa performance em que dava a Andy Warhol milhares de espigas de milho.
De costas para Warhol, ela mesma aparece numa fotografia, documentando a quitação da dívida. Esse retrato está no ateliê da artista até hoje, dois lados do pop, o miserável e o desmedido, olhando fixos para a câmera.
"A arte está acima da política", diz. "Mas interfere nela em ondas subterrâneas."


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