São Paulo, Quinta-feira, 24 de Junho de 1999
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LIVRO/LANÇAMENTO
"Centopéia", que será lançado hoje, reúne cem sonetos feitos pelo "poeta marginal" com o tema pés
Glauco Mattoso volta a pisar na literatura

Éder Chiodetto/Folha Imagem
O escritor Glauco Mattoso, com tábua que usa para compor sonetos


CASSIANO ELEK MACHADO
Editor-assistente interino da Ilustrada


Quem liga para a casa de Glauco Mattoso recebe o seguinte pedido da secretária eletrônica: "Após o sinal, deixe o número de seu sapato".
Notório obcecado por pés, o escritor paulistano tira os calçados de seu apartamento e volta hoje a levar sua "pedolatria" para espaço público.
Depois de dez anos em "silêncio poético", ou seja, sem publicar, Glauco Mattoso, 48, lança, às 20h, na Casa das Rosas, em São Paulo, o livro "Centopéia - Sonetos Nojentos e Quejandos", quarto volume da recém-criada editora Ciência do Acidente.
Nesse trabalho, o expoente da chamada "poesia marginal" alinhava cem sonetos que tratam de alguma forma do tema pé .
"Depois da roda, do algarismo arábico e do alfabeto latino, o soneto é a maior invenção do homem", diz, com humor, Glauco.
O escritor não precisou de mais de cinco meses para criar os cem sonetos de seu livro, feitos, "três por dia, em média", em um "quase estado de transe".
Glauco nasceu com glaucoma (e Glauco, claro, não é seu nome, mas pseudônimo). A doença, que provoca o aumento da pressão interna do olho, fez com que, gradativamente, ele fosse perdendo a visão.
Os últimos fiapos de vista, o poeta gastou para traduzir textos do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), o mais famoso cego da literatura contemporânea.
Com esse trabalho (que foi incluído nos recém-lançados dois primeiros volumes das "Obras Completas" de Borges, publicados pela editora Globo), Mattoso ganhou o Prêmio Jabuti de tradução, juntamente com uma equipe coordenada por Jorge Schwartz.
Mais do que ganhar a estatueta em forma de tartaruga, Glauco conseguiu, no contato intensivo com a escrita de Borges, recuperar o "ímpeto criativo", que estava adormecido desde que publicou seu livro anterior, "Limeiriques & Outros Debiques Glauquianos", que saiu em 1989 pela editora mineira Edições Dubolso.
Os cem sonetos de "Centopéia" já foram escritos na completa escuridão. Desde meados de 1995, o poeta perdeu totalmente a visão. Em sua retina, porém, Glauco tinha bem presente a imagem de Borges.
Bibliotecário na juventude, assim como o autor argentino, Glauco aprendeu com o autor de "O Aleph" que o fundamental é "organizar tudo na cabeça". Passou então a transformar os pesadelos que tinha todas as noites, desde que ficou cego, em criação poética.
Em pouco tempo, já "arquivava" com fidelidade as rimas que criava em um "estado intermediário entre o sono e a semiconsciência da insônia", que ele classifica como "um espaço permeado pelo misticismo e pelos demônios da libido".
A sinceridade na exposição de sua libido não chega a ser novidade no trabalho de Glauco.
"Desde o início, decidi sempre me autobiografar quando eu crio. Não se pode ter nenhum escrúpulo com relação a seus problemas. Você tem de expô-los e pôr o dedo na ferida", diz o autor de obras como "Manual do Pedólatra Amador -Aventuras & Leituras de um Tarado por Pés" (editora Expressão), em que confessa com minúcias o prazer que sente ao lamber solados masculinos, "fetichismo arraigado em mim desde a infância".
"Essa minha relação com o fetiche é tão irresistível quanto é para um viciado a droga. É uma relação extremamente conflituosa".
Conflitos internos não faltam também no formato de sua literatura. Desde o início, adotou formas rigorosas, como o concretismo, para embrulhar sua poética com temas nunca muito rigorosos.
Todos os elementos que rechearam suas criações até aqui, como o rock, o flerte com o orientalismo, o sadomasoquismo e o gosto pela literatura marginal aparecem em "Centopéia".
"Esse livro é uma espécie de recapitulação. É como se estivesse acordando de um pesadelo, a perda da visão, e tenho que reconstruir minha vida. Estou tão traumatizado, chocado com o que aconteceu, que é como se estivesse me reequilibrando, ficando de pé".
Mesmo que seja apenas no fim de uma conversa, Glauco nunca consegue ficar sem falar sobre pés.


Livro: Centopéia - Sonetos Nojentos & Quejandos Autor: Glauco Mattos Lançamento: edições Ciência do Acidente (tel. 011/3051-2407) Quando: hoje, às 20h Onde: Casa das Rosas (av. Paulista, 37, Cerqueira César, São Paulo, tel. 011/251-5271) Quanto: R$ 18 (112 págs.)


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