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São Paulo, quinta-feira, 24 de julho de 2003

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GASTRONOMIA

Cabritos e insanidades

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Sempre tive horror a entrevistas. Já me aconteceu de passar hora e meia tomando nota, e, no fim, era tudo balela. A casa, a mulher, os filhos, tudo mentira da boa. Agora confio mais nos sinais externos, na postura, nos tiques, na gagueira, no aperto de mão. Mas vou me devotar inteira a decifrar esse aqui, o chef está desesperado atrás de um auxiliar.
Cabeça grande, atarracado, cabelo louro, aço, de nortista. Moço e até bonito, firme, igual a uma árvore grande, bem fincada, uma realeza.
-Bom dia, senhora.
-Então, é de...
-Sergipe.
-Foi indicado pelo Laércio, primo da Silvana...
-É. Namorei a irmã do Laércio. Ele me indicou porque o meu pai era cozinheiro bom na terra dele.
-Era? Aprendeu com ele?
-Morreu, só saí de lá porque morreu.
A essas alturas ficou nervoso, engrossou a voz, me pareceu até que envelheceu. Quase estraçalhou o boné preto que tinha tirado um minuto antes e que usava de trás para diante. Mexeu os pés, incomodado.
-Minha mãe casou com o irmão do meu pai, um cara safado. Não aguentei, tomei o ônibus pra qualquer lugar que fosse. Sabe como é, o pai tão bom, sabendo das coisas, tão dono do lugar e vem um outro e toma conta de tudo.
Ele me desarmou com essa história, porque ninguém inventa uma coisa dessas de uma hora para a outra...
-A profissão de seu pai era de cozinheiro, mesmo?
-Profissão, mesmo, profissão, não. Gostava. E, quando tinha festa, um chamava daqui, outro dali, pra fazer um cabrito assado ou de panela, e ele foi ficando cada vez melhor; às vezes, passava mês fora de casa, de cabrito em cabrito.
-E você rodando com ele.
-Não, ficava com mãe. Mas aprendi o que pude. E, agora, depois que o pai se foi, fiquei nervoso, cheguei a ver vulto, avantesma me incitando a coisa ruim.
Não era bem o perfil que estávamos procurando, não era. Mas falava bem, boas palavras, tinha presença. Podia dar certo, fiquei pensando no que o teria empurrado com tanta força para fora de casa, além da morte do pai, porque morte de pai é normal, avô morre, pai morre, e a vida vai pra frente.
-Otelmo, essa queixa funda não é própria de sua idade... Mas fica. Vamos experimentar por um tempo, começa para mostrar o que sabe e vamos te observando.
Tomei mais uns dados, carteira nem tinha, e a vida de banqueteira, dispersiva que é, me tirou da frente o Otelmo.
De vez em quando, o chef de cozinha me falava bem dele. Como cozinheiro. De resto, me dizia, é uma catástrofe. Um homem deprimido. Só falava na terra, no pai, no pai que construíra um bodódromo, essa era demais, um bodódromo, um lugar cercado onde se fazia cabrito, bode, de todos os jeitos possíveis. Vinha gente de longe, formavam-se filas, o cara foi ficando rico, deu estudo para os filhos, tudo à custa dos bodes das pirambeiras inóspitas.
Resolvi chamá-lo de novo, era melhor prevenir do que remediar.
-Como é que vai, Otelmo? Soube que anda com as bochechas assadas de chorar. Para mim, deixou namorada para trás. Ou mulher.
-Deixei, sim, senhora, já contei da primeira vez que cheguei aqui. Mas não é o motivo, não. É que acho tudo tão triste e sem graça! Aquela história que me come, o casamento de minha mãe, antes mesmo que o corpo de pai esfriasse. Minha mãe não honrou a memória de pai. Mas não se preocupe a senhora, não, que hei de fazer passar do peito essa coisa ruim.
Dei uns conselhos em relação à brigada. Não fale demais, não entre em discussões nem em confronto direto com o chef, venha aqui nos dizer antes o que o incomoda, cuidado com gastação de dinheiro agora que foi aumentado, e nada de emprestar ou pedir emprestado, perde o amigo e o dinheiro.
E lá se foi ele com a mesma cara deprimida que Deus lhe deu.
Fizemos um casamento audacioso para uma noiva das mais modernas, só de cabrito, purê de brócoli, polenta de semolina branca com um pouquinho de alecrim, uma couve fina frita à chinesa, crocante, e foi um sucesso de verdade. Quem comandou a cozinha com muito garbo foi o Otelmo, sempre de cenho carregado, apesar da infinita gentileza com a qual tratava os ingredientes. Na época, achei que, pela primeira vez na vida, uma entrevista tinha dado certo, ele era um cozinheiro de verdade.
Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe. Logo depois começaram boatos na cozinha de que o menino enlouquecera. Falava muito, sem nexo, mas até que havia método em sua loucura, dizia coisas sábias, mas completamente fora do contexto. Impertinente, respondão, podia contaminar o pessoal. Teve que ir embora.
Quando Silvana saiu de férias e foi visitar a família, voltou com notícias brabas de Otelmo. Muito bravas, terríveis. Otelmo chegou lá, procurou a namorada e, em vez de pedir-lhe a mão, quase acabou com a vida dela, rogou praga, a coitada definhou e acabou se suicidando no riacho onde batia roupa, tudo por loucura de perseguição dele.
Otelmo obedecia a vozes, acabou tudo com uma matança geral no bodódromo, foi-se o tio, a mãe, o irmão da namorada e ele próprio. Saiu em todos os jornais, vingança, vingança em letras garrafais. Vingança ou justiça de Deus, remendou Silvana.
Peguei de herança o caderninho dele, rabiscado, mas com letra boa. Guardei, meio arrepiada, sem saber se acreditava nessa história toda ou não. Na capa ele escrevera: "Uns precisam velar, outros dormir." Mais adiante, "o homem pode sorrir e ser infame".
Não entendi bem, nunca entendi muito bem o Otelmo. Só sei que deixou boas receitas de cabrito.

ninahort@uol.com.br


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