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GASTRONOMIA
Cabritos e insanidades
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Sempre tive horror a entrevistas. Já me aconteceu de passar
hora e meia tomando nota, e, no
fim, era tudo balela. A casa, a mulher, os filhos, tudo mentira da
boa. Agora confio mais nos sinais
externos, na postura, nos tiques,
na gagueira, no aperto de mão.
Mas vou me devotar inteira a decifrar esse aqui, o chef está desesperado atrás de um auxiliar.
Cabeça grande, atarracado, cabelo louro, aço, de nortista. Moço
e até bonito, firme, igual a uma árvore grande, bem fincada, uma
realeza.
-Bom dia, senhora.
-Então, é de...
-Sergipe.
-Foi indicado pelo Laércio,
primo da Silvana...
-É. Namorei a irmã do Laércio. Ele me indicou porque o meu
pai era cozinheiro bom na terra
dele.
-Era? Aprendeu com ele?
-Morreu, só saí de lá porque
morreu.
A essas alturas ficou nervoso,
engrossou a voz, me pareceu até
que envelheceu. Quase estraçalhou o boné preto que tinha tirado
um minuto antes e que usava de
trás para diante. Mexeu os pés, incomodado.
-Minha mãe casou com o irmão do meu pai, um cara safado.
Não aguentei, tomei o ônibus pra
qualquer lugar que fosse. Sabe como é, o pai tão bom, sabendo das
coisas, tão dono do lugar e vem
um outro e toma conta de tudo.
Ele me desarmou com essa história, porque ninguém inventa
uma coisa dessas de uma hora para a outra...
-A profissão de seu pai era de
cozinheiro, mesmo?
-Profissão, mesmo, profissão,
não. Gostava. E, quando tinha festa, um chamava daqui, outro dali,
pra fazer um cabrito assado ou de
panela, e ele foi ficando cada vez
melhor; às vezes, passava mês fora de casa, de cabrito em cabrito.
-E você rodando com ele.
-Não, ficava com mãe. Mas
aprendi o que pude. E, agora, depois que o pai se foi, fiquei nervoso, cheguei a ver vulto, avantesma
me incitando a coisa ruim.
Não era bem o perfil que estávamos procurando, não era. Mas falava bem, boas palavras, tinha
presença. Podia dar certo, fiquei
pensando no que o teria empurrado com tanta força para fora de
casa, além da morte do pai, porque morte de pai é normal, avô
morre, pai morre, e a vida vai pra
frente.
-Otelmo, essa queixa funda
não é própria de sua idade... Mas
fica. Vamos experimentar por um
tempo, começa para mostrar o
que sabe e vamos te observando.
Tomei mais uns dados, carteira
nem tinha, e a vida de banqueteira, dispersiva que é, me tirou da
frente o Otelmo.
De vez em quando, o chef de cozinha me falava bem dele. Como
cozinheiro. De resto, me dizia, é
uma catástrofe. Um homem deprimido. Só falava na terra, no
pai, no pai que construíra um bodódromo, essa era demais, um
bodódromo, um lugar cercado
onde se fazia cabrito, bode, de todos os jeitos possíveis. Vinha gente de longe, formavam-se filas, o
cara foi ficando rico, deu estudo
para os filhos, tudo à custa dos bodes das pirambeiras inóspitas.
Resolvi chamá-lo de novo, era
melhor prevenir do que remediar.
-Como é que vai, Otelmo?
Soube que anda com as bochechas assadas de chorar. Para mim,
deixou namorada para trás. Ou
mulher.
-Deixei, sim, senhora, já contei da primeira vez que cheguei
aqui. Mas não é o motivo, não. É
que acho tudo tão triste e sem graça! Aquela história que me come,
o casamento de minha mãe, antes
mesmo que o corpo de pai esfriasse. Minha mãe não honrou a memória de pai. Mas não se preocupe a senhora, não, que hei de fazer
passar do peito essa coisa ruim.
Dei uns conselhos em relação à
brigada. Não fale demais, não entre em discussões nem em confronto direto com o chef, venha
aqui nos dizer antes o que o incomoda, cuidado com gastação de
dinheiro agora que foi aumentado, e nada de emprestar ou pedir
emprestado, perde o amigo e o dinheiro.
E lá se foi ele com a mesma cara
deprimida que Deus lhe deu.
Fizemos um casamento audacioso para uma noiva das mais
modernas, só de cabrito, purê de
brócoli, polenta de semolina
branca com um pouquinho de
alecrim, uma couve fina frita à
chinesa, crocante, e foi um sucesso de verdade. Quem comandou a
cozinha com muito garbo foi o
Otelmo, sempre de cenho carregado, apesar da infinita gentileza
com a qual tratava os ingredientes. Na época, achei que, pela primeira vez na vida, uma entrevista
tinha dado certo, ele era um cozinheiro de verdade.
Não há bem que sempre dure,
nem mal que nunca se acabe. Logo depois começaram boatos na
cozinha de que o menino enlouquecera. Falava muito, sem nexo,
mas até que havia método em sua
loucura, dizia coisas sábias, mas
completamente fora do contexto.
Impertinente, respondão, podia
contaminar o pessoal. Teve que ir
embora.
Quando Silvana saiu de férias e
foi visitar a família, voltou com
notícias brabas de Otelmo. Muito
bravas, terríveis. Otelmo chegou
lá, procurou a namorada e, em
vez de pedir-lhe a mão, quase acabou com a vida dela, rogou praga,
a coitada definhou e acabou se
suicidando no riacho onde batia
roupa, tudo por loucura de perseguição dele.
Otelmo obedecia a vozes, acabou tudo com uma matança geral
no bodódromo, foi-se o tio, a
mãe, o irmão da namorada e ele
próprio. Saiu em todos os jornais,
vingança, vingança em letras garrafais. Vingança ou justiça de
Deus, remendou Silvana.
Peguei de herança o caderninho
dele, rabiscado, mas com letra
boa. Guardei, meio arrepiada,
sem saber se acreditava nessa história toda ou não. Na capa ele escrevera: "Uns precisam velar, outros dormir." Mais adiante, "o homem pode sorrir e ser infame".
Não entendi bem, nunca entendi muito bem o Otelmo. Só sei que
deixou boas receitas de cabrito.
ninahort@uol.com.br
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