São Paulo, sábado, 24 de julho de 2004

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RODAPÉ

O cosmorama fractal de Horácio Costa

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Fracta" é uma antologia da produção poética de Horácio Costa, com textos extraídos de "28 Poemas 6 Contos" (1981), "Satori" (1989), "O Livro dos Fracta" (1990), "The Very Short Stories" (1991), "O Menino e o Travesseiro" (1994) e "Quadragésimo" (1999), além de poemas até agora inéditos em livro.
Trata-se de boa oportunidade para se ter uma visão do conjunto de uma obra que traz para a poesia brasileira duas fortes contribuições: uma reflexão sobre a história contemporânea e uma dicção marcada pela narratividade.
Na verdade, esses dois elementos se determinam mutuamente, não sendo possível separá-los: o gosto pela frase longa, pelo raciocínio complexo, predispõe a poesia de Horácio Costa a acolher temas incompatíveis com poéticas fragmentárias.
Ele não apenas expõe as fraturas da modernidade (tal como vemos nos instantâneos alucinados de Régis Bonvicino ou nas elipses irônicas de Francisco Alvim), mas procura estabelecer pontes entre realidades distantes, causalidades e contigüidades que pedem a dilatação do poema no espaço físico da página.
Seria impossível ignorar as relações entre sua experiência mexicana (Horácio Costa viveu a maior parte da maturidade literária como professor da Universidade Autônoma do México) e a tradição do poema longo latino-americano. Aliás, num dos textos críticos publicados ao final do volume (que reúne ainda ensaios de autores como Severo Sarduy e José Saramago), o romancista Milton Hatoum nota as semelhanças estruturais entre "Musa em Cancún" e o poema "Blanco" de Octavio Paz.
Mas é preciso destacar o modo bastante singular com que Costa se apropria dessa tradição poética discursiva. Dois exemplos: "O Menino e o Travesseiro", espécie de "Viagem ao Redor de Meu Quarto" de um garoto que recapitula seu romance familiar e a história de sua cidade; e o poema "Quadragésimo", paráfrase de "A Máquina do Mundo", de Drummond (e, por extensão, dos "Lusíadas" de Camões), em que esse momento-chave do modernismo brasileiro se desdobra num momento de crise e clímax da escrita autobiográfica.
É uma poesia, enfim, que alia um sentido cósmico -com várias referências à mitologia, à natureza e a um tempo cíclico que engole o sujeito (como podemos ler em "Vinte Anos Depois")- a um registro afetivo, memorialístico e, por esse viés, irônico e anti-retórico.
"Micropaisagens, não micropolíticas", escreve ele num dos inéditos de "Fracta". Ou seja, apesar das várias referências a uma temática homoerótica, a reflexão de Horácio Costa sobre a história não se refugia em particularismos ideológicos e, mesmo sendo microscópica, compõe um "cosmorama" (segundo expressão de Jorge Lima na epígrafe de "O Menino e o Travesseiro").
Mas também podemos falar em cosmopolitismo no caso desse poeta em que a experiência contemporânea surge tanto nas cidades interioranas brasileiras quanto nas ruas de São Paulo, Nova York ou Roma, emerge dos versos de Cabral e Elizabeth Bishop, dos quadros de Cézanne, Mondrian e Tápies.
Exemplar, nesse sentido, é o poema "Marat", em que a imagem do revolucionário francês apunhalado numa banheira (eternizada pelo quadro de David), serve como meditação pós-utópica sobre a violência das engrenagens históricas.
Por ser uma antologia, o livro apresenta grande diversidade -e os poemas de "O Livro dos Fracta" contradizem, até certo ponto, o que foi dito acima, pois obedecem a uma lógica de "fragmentista" que faz com que a concisão equivalha a um hermetismo conseqüente com a "geometria do caos" proposta pelo físico francês Benoît Mandelbrot (e explicada em ensaio de Irlemar Chiampi).
No conjunto, todavia, "Fracta" conjuga a agudeza crítica do barroco brasileiro (como nos sonetos "Poema" e "História Natural") com valores do neobarroco latino-americano (a não-linearidade e a simultaneidade dos poemas em prosa "The Very Short Stories"), mostrando que a crise da representação não significa, necessariamente, perda do poder de reflexão.


Fracta - Antologia Poética
    
Autor: Horácio Costa
Editora: Perspectiva
Quanto: R$ 38 (280 págs.)



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