São Paulo, segunda-feira, 24 de julho de 2006

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NELSON ASCHER

Kaváfis e os bárbaros


O poeta pertence ao círculo restrito de criadores tão originais como consumados

O TAMANHO e a demografia, assim como a situação econômica ou política de um país qualquer, têm pouco a ver, pelo menos diretamente, com a qualidade de sua cultura. Se, embora buscar explicar alguma tradição artística ou literária, recorrendo sobretudo ao contexto material em que surgiram, mostra-se quase sempre ingênuo e intelectualmente empobrecedor, examinar tais ou quais obras também à luz dos fatores distintos pode, não raro, enriquecer sua compreensão e o prazer que se extrai delas.
Para quem não sabe disso, um dos paradoxos mais comuns reside em constatar como nações e povos pequenos, não muito afluentes, às vezes vítimas de uma história cruel, vivendo em condições pouco invejáveis e ainda com inúmeros problemas a resolver, têm sido capazes de dar à luz poetas e pintores, músicos e cineastas em nada inferiores aos de países maiores, ricos, poderosos.
A Grécia do último século e meio, particularmente no que concerne sua poesia, está entre os casos exemplares. Pobre até há pouco, submetido a ocupantes variados, dos romanos na antiguidade, aos otomanos e, logo em seguida, aos nazistas, traumatizado pela perda de territórios históricos e pela limpeza étnica perpetrada (em 1923) contra seus compatriotas pelos vizinhos e arqui-inimigos turcos (algo que Ernest Hemingway testemunhou na condição de repórter), palco de uma prolongada guerra civil seguida de um golpe militar, o país balcânico foi duas vezes premiado, merecidamente, com o Nobel literário. Giórgos Seféris (em 1963) e Odysseus Elytis (em 1979) ganharam o prêmio que poderia, sem injustiça alguma, ter sido dado, por exemplo, a Nikos Kazantzákis e Yannis Ritsos.
Embora todos fossem autores de primeira cujas qualidades o tempo confirmou, o maior escritor neogrego (língua que descende do grego clássico e está para este como o latim para nossa "última flor do Lácio"), o poeta reconhecido pelos demais como seu mestre foi Konstantinos Kaváfis (1863-1933).
Nativo e habitante de Alexandria, cidade (até os anos 50) cosmopolita, multicultural e multilíngüe, Kaváfis (há várias transcrições latinas de seu nome: Kavafy, Caváfys etc.) pertence, não obstante a brevidade de sua obra (cerca de duzentos poemas curtos), ao círculo restrito de criadores tão originais como consumados. Seus versos que, por um lado, celebram o amor homoerótico e, por outro, exploram e presentificam de modo inconfundível a história de seu povo, têm paralelos estilísticos, imaginativos, metodológicos e até existenciais com o que fizeram certos autores inclassificáveis: Fernando Pessoa e Jorge Luis Borges.
"Descoberto" e revelado ao mundo por gerações sucessivas de admiradores empenhados, o alexandrino é hoje reconhecido como uma das figuras centrais da poesia moderna e sua lírica não cessa de ser traduzida e retraduzida para os idiomas que importam. Jorge de Senna (em Portugal) e José Paulo Paes (no Brasil) traduziram seleções generosas de seus versos. Mas tivemos de esperar pelo trabalho dedicado e competente de Isis Borges B. da Fonseca para podermos finalmente ler em português o conjunto de seus poemas canônicos na bela edição bilíngüe (408 págs.) recém-publicada pela Odysseus Editora.
Nenhum poema entre os que Kaváfis escreveu se tornou tão famoso quanto o conciso e irônico "Esperando os Bárbaros". Como não poderia deixar de ser, após ler e reler, anos a fio, dúzias de traduções para o inglês, francês, espanhol, italiano etc., eu tampouco resisti a arriscar a minha.

KAVÁFIS ESPERANDO OS BÁRBAROS

O que é, juntos no fórum, que esperamos?
Os bárbaros, que chegam hoje.
Por que, em sessão, nosso senado não
Faz nada e os senadores não legislam?
Porque os bárbaros chegam hoje.
Que novas leis passar? Chegando,
Os bárbaros farão as suas.
Por que nosso monarca está coroado
E em pompa, desde cedo, no seu trono
Defronte à maior porta da cidade?
Porque os bárbaros chegam hoje
E, pronto a recebê-los, nosso
Monarca mandou mesmo preparar
Para seu chefe um édito no qual
Lhe outorga honras e títulos diversos.
Por que ambos cônsules e até pretores,
Em ricas togas púrpuras, se exibem
Com anéis ofuscantes de esmeraldas
E braceletes cheios de ametistas?
Por que ostentam, lavrados de ouro e prata,
Bordões esplêndidos em suas mãos?

Porque os bárbaros chegam hoje
E adornos tais os impressionam.

Por que os tribunos se mantêm calados,
Nem, como de hábito, um sequer perora?
Os bárbaros, que chegam hoje,
Execram falas e eloqüência.
Por que este mal-estar (Como os semblantes
Se põem sombrios!) que despovoa abrupto
Rua e praça em tumulto? - E por que todo
Mundo volta apreensivo para casa?
Porque anoitece, os bárbaros não chegam
E gente vinda da fronteira afirma
Que já não há mais bárbaro nenhum.
E agora, sem os bárbaros que, à sua
Maneira, eram nossa última esperança?


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