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NELSON ASCHER
Kaváfis e os bárbaros
O poeta pertence ao círculo restrito de criadores tão originais como consumados
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O
TAMANHO e a demografia, assim como a situação econômica ou política de um país
qualquer, têm pouco a ver, pelo menos diretamente, com a qualidade
de sua cultura. Se, embora buscar
explicar alguma tradição artística ou
literária, recorrendo sobretudo ao
contexto material em que surgiram,
mostra-se quase sempre ingênuo e
intelectualmente empobrecedor,
examinar tais ou quais obras também à luz dos fatores distintos pode,
não raro, enriquecer sua compreensão e o prazer que se extrai delas.
Para quem não sabe disso, um dos
paradoxos mais comuns reside em
constatar como nações e povos pequenos, não muito afluentes, às vezes vítimas de uma história cruel, vivendo em condições pouco invejáveis e ainda com inúmeros problemas a resolver, têm sido capazes de
dar à luz poetas e pintores, músicos
e cineastas em nada inferiores aos
de países maiores, ricos, poderosos.
A Grécia do último século e meio,
particularmente no que concerne
sua poesia, está entre os casos exemplares. Pobre até há pouco, submetido a ocupantes variados, dos romanos na antiguidade, aos otomanos e,
logo em seguida, aos nazistas, traumatizado pela perda de territórios
históricos e pela limpeza étnica perpetrada (em 1923) contra seus compatriotas pelos vizinhos e arqui-inimigos turcos (algo que Ernest Hemingway testemunhou na condição
de repórter), palco de uma prolongada guerra civil seguida de um golpe militar, o país balcânico foi duas
vezes premiado, merecidamente,
com o Nobel literário. Giórgos Seféris (em 1963) e Odysseus Elytis (em
1979) ganharam o prêmio que poderia, sem injustiça alguma, ter sido
dado, por exemplo, a Nikos Kazantzákis e Yannis Ritsos.
Embora todos fossem autores de
primeira cujas qualidades o tempo
confirmou, o maior escritor neogrego (língua que descende do grego
clássico e está para este como o latim para nossa "última flor do Lácio"), o poeta reconhecido pelos demais como seu mestre foi Konstantinos Kaváfis (1863-1933).
Nativo e habitante de Alexandria,
cidade (até os anos 50) cosmopolita,
multicultural e multilíngüe, Kaváfis
(há várias transcrições latinas de seu
nome: Kavafy, Caváfys etc.) pertence, não obstante a brevidade de sua
obra (cerca de duzentos poemas
curtos), ao círculo restrito de criadores tão originais como consumados.
Seus versos que, por um lado, celebram o amor homoerótico e, por outro, exploram e presentificam de
modo inconfundível a história de
seu povo, têm paralelos estilísticos,
imaginativos, metodológicos e até
existenciais com o que fizeram certos autores inclassificáveis: Fernando Pessoa e Jorge Luis Borges.
"Descoberto" e revelado ao mundo por gerações sucessivas de admiradores empenhados, o alexandrino
é hoje reconhecido como uma das figuras centrais da poesia moderna e
sua lírica não cessa de ser traduzida
e retraduzida para os idiomas que
importam. Jorge de Senna (em Portugal) e José Paulo Paes (no Brasil)
traduziram seleções generosas de
seus versos. Mas tivemos de esperar
pelo trabalho dedicado e competente de Isis Borges B. da Fonseca para
podermos finalmente ler em português o conjunto de seus poemas canônicos na bela edição bilíngüe (408
págs.) recém-publicada pela Odysseus Editora.
Nenhum poema entre os que Kaváfis escreveu se tornou tão famoso
quanto o conciso e irônico "Esperando os Bárbaros". Como não poderia deixar de ser, após ler e reler,
anos a fio, dúzias de traduções para o
inglês, francês, espanhol, italiano
etc., eu tampouco resisti a arriscar a
minha.
KAVÁFIS
ESPERANDO OS BÁRBAROS
O que é, juntos no fórum, que esperamos?
Os bárbaros, que chegam hoje.
Por que, em sessão, nosso senado não
Faz nada e os senadores não legislam?
Porque os bárbaros chegam hoje.
Que novas leis passar? Chegando,
Os bárbaros farão as suas.
Por que nosso monarca está coroado
E em pompa, desde cedo, no seu trono
Defronte à maior porta da cidade?
Porque os bárbaros chegam hoje
E, pronto a recebê-los, nosso
Monarca mandou mesmo preparar
Para seu chefe um édito no qual
Lhe outorga honras e títulos diversos.
Por que ambos cônsules e até pretores,
Em ricas togas púrpuras, se exibem
Com anéis ofuscantes de esmeraldas
E braceletes cheios de ametistas?
Por que ostentam, lavrados de ouro e prata,
Bordões esplêndidos em suas mãos?
Porque os bárbaros chegam hoje
E adornos tais os impressionam.
Por que os tribunos se mantêm calados,
Nem, como de hábito, um sequer perora?
Os bárbaros, que chegam hoje,
Execram falas e eloqüência.
Por que este mal-estar (Como os
semblantes
Se põem sombrios!) que despovoa abrupto
Rua e praça em tumulto? - E por que todo
Mundo volta apreensivo para casa?
Porque anoitece, os bárbaros não chegam
E gente vinda da fronteira afirma
Que já não há mais bárbaro nenhum.
E agora, sem os bárbaros que, à sua
Maneira, eram nossa última esperança?
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