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Os que se vão, os que ficamos
JOÃO BATISTA DE ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA
SIM, somos mesmo
passageiros, efêmeros.
Ao olhar para o
semblante calmo e imóvel de
Gianfrancesco Guarnieri no
velório do Hospital Sírio-Libanês, surpreendo-me a somar perdas. Em que algibeira
teria eu guardado os ganhos,
os feitos, as lutas, os prazeres? Em silêncio, dialogo
com o silêncio desse amigo
de tantas idéias, tantos feitos, tanta generosidade.
Conheci Guarnieri, ainda
estudante de engenharia, na
Politécnica da USP, início
dos anos 1960. Eu tinha, então, já como um ídolo, esse líder do Teatro de Arena, movimento que marcou profundamente minha geração. Vi
sua imagem primeiro no
pungente filme "O Grande
Momento", de Roberto Santos: a imagem de um jovem
ator, talentoso, vestindo a camisa de nosso neo-realismo,
porta aberta para o moderno
cinema brasileiro. Depois, eu
o via quase face a face, pois
era assim o Arena: atores
próximos do público, como
numa roda envolvente, em
que nos tornávamos participantes da aventura de representar este país tão fascinante quanto difícil. Os personagens desfilavam ali seus dramas, suas malícias, sonhos,
entre perigos e glórias, esperanças e desesperos.
Nós, da platéia, vínhamos
das escolas, das assembléias,
das passeatas, onde a questão nacional e popular nos
ocupava mais do que a própria escola. Era preciso mudar as coisas, mudar o país,
mudar o poder, a política,
construir um novo futuro!
Era o que sonhávamos ali, na
roda de palavras e peitos empinados de rebeldia dos atores e seus autores, entre os quais estava Guarnieri.
Vida distorcida
Mas o tempo foi escasso.
Logo estávamos todos, a partir de 1964, sob a ditadura
militar com seus 21 anos de
violência, exclusão, distorcendo a vida brasileira ainda
para muitas décadas. Perdemos, além de vidas preciosas,
a energia de uma geração que
se preparava para dirigir o
país. Vimos o poder deslizar
para as mãos de incautos e da
escória oportunista que ainda hoje domina boa parte da
vida política brasileira, inflando uma perigosa descrença na sociedade.
Ao olhar para a expressão
tranqüila do Guarnieri em
seu repouso de guerreiro,
dialogo com seu silêncio sábio e imagino que tudo poderia ter sido diferente: o Golpe de 64 poderia não ter acontecido, eu teria terminado meu
curso de engenharia ainda
naquele ano fatídico, e Guarnieri teria desenvolvido ainda mais suas idéias, suas críticas, sua dramaturgia com
toda aquela gente que eu via
de tão perto no Arena.
O mundo já não era como
queríamos, como sonháramos. Viver sob a ditadura nos
fez aprender valores antes
pouco sedimentados: a democracia, o pluralismo, o Estado de Direito, consciência
fundamental na luta pela
derrota (e não "derrubada")
da ditadura militar. Nos tornamos mais críticos de nossos próprios sonhos, comportamento que Guarnieri já
cultivara, precocemente.
Nós o perdemos agora,
Guarnieri, isso faz parte da
vida. Vivemos pouco e por isso é tão importante o que fazemos e o que fizemos pela
vida. Vale a pena ainda, apesar de tanto desacerto, o
exemplo, a dignidade, o desconcerto e a repulsa radical a
toda injustiça, a toda perseguição, a toda violência, a toda miséria. E a persistente
crença de que é possível um
mundo melhor.
Ali, de pé, entre familiares
desse amigo, consigo imaginar, em seu semblante de
calma infinita, o sinal de um
leve sorriso. Guarnieri continuará vivendo entre nós como um inesquecível e raro
exemplo.
JOÃO BATISTA DE ANDRADE , cineasta, dirigiu Guarnieri em "Eterna Esperança"
(1969, em parceria com Jean-Claude Bernardet) e "A Próxima Vítima" (1983). Desde
2005 "está" secretário da Cultura do Estado
de São Paulo
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