|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O perigoso estado das coisas
Nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil, o cinema independente está passando pela mais grave crise desde que, há 50 anos, a nouvelle vague deu sentido ao termo
Divulgação
|
|
Os atores Jeffrey Kime e Isabelle Weingarten em cena de
"O Estado das Coisas', de Wim Wenders
WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA
No filme de Wim Wenders
que ganhou o Festival de Veneza em 1982, "O Estado das Coisas", uma equipe de cinema independente para em plena rodagem de uma ficção científica
por falta de financiamento.
O que era ficção tornou-se
realidade. Em vários países, o
cinema independente passa
pela maior crise desde que, há
50 anos, a nouvelle vague e realizadores como John Cassavetes deram sentido ao termo. O
resultado é, em diversas latitudes, inquietante.
Nos EUA, os estúdios fecharam várias distribuidoras que
haviam criado para lançar ou
coproduzir filmes independentes. A New Yorker Films, a emblemática distribuidora que levou nomes como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Abbas
Kiarostami e mais recentemente Jia Zhang-ke às telas
norte-americanas, também
cerrou as portas.
Mais de 90% dos filmes apresentados no Festival Sundance
no início do ano nunca sairão
nos cinemas, por falta de distribuição. Com a crise, é paradoxalmente mais provável que filmes de US$ 150 ou US$ 200 milhões sejam produzidos hoje
nos EUA do que um pequeno
filme independente de baixo
orçamento.
A lógica dos estúdios mudou:
produzir menos filmes, com
conteúdo já testado, lançados
no maior número de salas ao
redor do mundo, simultaneamente. Nessa equação industrial, o custo não é um problema. O risco, sim. Resultado: o
cardápio cinematográfico norte-americano está se tornando
cada vez mais restrito, e o conteúdo, mais conservador.
Em grande parte, "sequels",
"prequels" ou adaptações de séries de televisão. A safra excepcional de 2007 ("Onde os Fracos Não Têm Vez", "Sangue Negro", "Não Estou Lá" e "Zodíaco", entre outros) não deve se
repetir tão cedo. E dá-lhe
"Transformers" 2, 3, 4...
Na Europa, a política cultural
instaurada há décadas em países como a França ou a Espanha defende o cinema independente e o protege de um terremoto como esse que os EUA estão vivenciando. Mas, mesmo
por lá, a situação é cada vez
mais preocupante. A sólida safra de autores em competição
em Cannes 2009 ainda é o reflexo de uma situação pré-crise.
Como o ciclo de produção de
um filme é, em média, de dois
anos, pode-se temer pelas safras de 2010 e, sobretudo, 2011.
Com a falta de crédito, produtores e realizadores europeus estão mais dependentes
das TVs. E com a privatização
das redes, só os longas que respondem a uma lógica de grande
público e podem passar em horário nobre encontram rapidamente financiamento. Os outros penam. Como exercício,
pode-se imaginar o tipo de filmes que as três redes de Silvio
Berlusconi cofinanciam.
Numa Europa em recessão,
até realizadores como Milos
Forman tiveram filmes em pré-produção suspensos. Mais uma
vez, a equação se repete: menos
risco, mais previsibilidade, menos diversidade.
Num encontro recente em
Berlim, Wim Wenders dizia
que, hoje, é provável que um filme como "Asas do Desejo"
(1987) não fosse mais financiado. O filme, assim como "Alice
nas Cidades" (1974), não tinha
um roteiro escrito. Tinha, ao
contrário, uma ideia que nutria
o filme, e que era desenvolvida
a cada dia durante a filmagem.
Em grande parte improvisado,
"Asas do Desejo" foi viabilizado
em um momento em que o processo decisório em torno do cinema independente era outro.
Poucas fontes
Hoje sobram apenas algumas
fontes de financiamento, canais culturais independentes
como a Arte na França, o Film
Four e a BBC na Inglaterra, que
ainda se aventurariam em projetos semelhantes. Porém, a
maioria desses canais sofreu
cortes importantes de orçamento em 2009.
Wenders também se inquietava com a crise da cinefilia:
mesmo que um filme como
"Asas do Desejo" ainda pudesse
ser feito, haveria público para
assisti-lo? Lançado com poucas
cópias, o filme de autor depende de tempo de permanência
nas salas. Em sentido contrário, a rotatividade dos filmes
nos cinemas acelera-se a cada
ano. Na Europa como no Brasil,
o perfil das salas de exibição
tem mudado rapidamente, de
salas independentes de rua para multiplexes em shoppings.
Nesses novos espaços, o mesmo filme ocupa frequentemente várias salas de exibição.
Mudança de hábito, mudança de público. Foi-se o tempo
em que um filme como "Sem
Destino" (1968), de Dennis
Hopper, ficava 20 anos em cartaz em Paris. A sala onde isso
aconteceu, o Cinoche em St.
Germain, fechou em 2008. Deu
lugar a uma rede de fast-food.
Em alguns países, filmes têm
saído diretamente dos festivais
para as telas das cinematecas,
sem passar pelo mercado exibidor tradicional.
É o caso de Kiarostami e Nuri
Ceylan na Inglaterra. Seus últimos filmes só chegaram ao público inglês graças ao National
Film Theatre -salas de exibição mantidas pelo British Film
Institute.
Godard e Truffaut
Voltando ao ponto de partida, a nouvelle vague: Godard e
Truffaut instauraram a ideia de
que o cinema era uma arte total, o ponto de encontro entre a
literatura, o teatro, a pintura, a
fotografia, a arquitetura, a filosofia. Desde então, gerações se
formaram tendo o cinema como instrumento de compreensão e desvendamento do mundo. Como seria viver em um
mundo em que esses filmes que
vão além do simples entretenimento não mais existiriam?
O teatro foi dado muitas vezes como morto - e não parou
de renascer desde então. O
mesmo foi dito do cinema
quando a TV se tornou dominante. A sentença repete-se
agora com a internet. Quando o
cinema foi inventado, as primeiras exibições de filmes
aconteceram em circos. "O cinema é primo da roda-gigante",
disse uma vez Walter Lima Jr.
A roda-gigante também foi dada como morta, e nunca morreu. Talvez porque ela nos ofereça uma visão única, panorâmica, do mundo -e a possibilidade do encantamento.
WALTER SALLES, 53, é cineasta, diretor de
"Central do Brasil" e "Diários de Motocicleta",
entre outros
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Produtoras encolhem com a crise financeira Índice
|