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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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CRÍTICA

Imagens nos inspiram a uma maior investigação

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Fotos de pessoas trucidadas, relatos de genocídio, cenas de massacre na televisão -coisas desse tipo, de tantas vezes repetidas, terminam deixando o público indiferente. A violência se banaliza. Pior: transforma-se em espetáculo.
Argumentos desse tipo não são novos, e a ensaísta americana Susan Sontag já defendia a tese no livro "Sobre Fotografia" (77). A novidade de "Diante da Dor dos Outros", texto de 2003 que a Companhia das Letras publica, está no fato de que Sontag reexamina, e contesta, essas afirmações.
"Qual a prova", pergunta, "de que as fotos produzem um impacto decrescente, de que nossa cultura de espectadores neutraliza a força moral das fotos de atrocidades?". Imagens famosas, como a da menina vietnamita fugindo das bombas de napalm (foto tirada em 1972 por Huynh Cong Ut), têm o efeito de se fixarem na memória, como síntese e exemplo dos horrores da guerra; mas isso não significa necessariamente que tenham sofrido um processo de banalização.
Ela continua: "O rosto horrivelmente desfigurado de veteranos da Primeira Guerra (...); o rosto empapado e inchado com o tecido das cicatrizes de sobreviventes das bombas atômicas americanas lançadas em Hiroshima e Nagasaki; o rosto fendido a golpes de facão dos tútsis que sobreviveram ao genocídio desencadeado pelos hutus em Ruanda -será correto dizer que as pessoas se habituam a essas imagens?".
Há fortes indícios em contrário. Sontag nota que, em geral, os governos são os principais interessados em não divulgar cenas chocantes. A então primeira-ministra britânica Margaret Thatcher restringiu a presença de fotógrafos na Guerra das Malvinas; na Guerra do Golfo, a televisão deixou de exibir o massacre de milhares de recrutas iraquianos em retirada, bombardeados no que foi chamado por um militar americano de "tiro ao alvo nos patinhos".

Bom gosto?
Razões de bom gosto, talvez. Mas Sontag (e aqui encontramos o típico tom inconformado da autora, seja qual for a tese que esteja defendendo no momento) observa que o bom gosto "é sempre um critério repressivo quando invocado por instituições".
Excetuados alguns lances melodramáticos da argumentação, e certa tendência para "mostrar serviço" no quesito informação enciclopédica (Ticiano, a Ilíada, Henry James), o livro de Sontag é convincente e foge do lugar-comum. Não é o acúmulo de fotos que produz indiferença; há uma série de outros fatores em jogo.
"A compaixão é uma emoção instável", diz a autora. "Ela precisa ser traduzida em ação, do contrário definha." Comover-se, apenas, não é grande mérito moral. Por outro lado, podemos facilmente querer virar a página do jornal ou desligar a TV se considerarmos que a situação retratada é insolúvel. Sem dúvida, uma mera foto, por mais terrível que seja, não substitui uma análise contextualizada da situação que a produziu. "Imagens dolorosas e pungentes", diz, fornecem apenas a centelha inicial para que cada um de nós (se puder) vá mais adiante.

Diante da Dor dos Outros


    


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