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CINEMA
Autor e diretor de "Lavoura Arcaica" falam à Folha
Da semente ao fruto
Raduan Nassar e Luiz Fernando Carvalho discutem o processo de criação e produção do premiado longa
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Divulgação
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A atriz Simone Spoladore, que interpreta Ana no filme "Lavoura Arcaica", em cena do longa |
MARILENE FELINTO E JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTAS DA FOLHA
"Um verdadeiro encontro." Assim o escritor Raduan Nassar, 65,
e o cineasta Luiz Fernando Carvalho, 41, definem a relação que se
criou entre eles durante a realização do filme "Lavoura Arcaica",
dirigido pelo segundo a partir do
romance do primeiro.
O filme, que recebeu o prêmio
de melhor contribuição artística
no Festival de Montréal, terá sua
primeira exibição no Brasil em 3
de outubro, no Festival Rio BR.
Depois passará na Mostra Internacional de São Paulo. Entrará em
cartaz no final de outubro.
Estrelado por Selton Mello e
Raul Cortez, "Lavoura" é ambientado numa família de origem árabe no interior do Brasil, meio em
que Nassar foi criado. O escritor
ficou tão empolgado com o filme
que topou conversar sobre ele
com Carvalho, com exclusividade
para a Folha. A conversa foi em
sua casa, em São Paulo.
Folha - Como foi a relação de vocês na realização do filme?
Luiz Fernando Carvalho -Primeiro tivemos vários contatos, muito
produtivos, mas sem grande envolvimento. Nossa aproximação
veio quando eu já estava com o filme quase pronto, recebendo certa
pressão dos produtores para diminuir sua duração e torná-lo
mais comercial. Estava com três
horas e meia. Queriam que eu
cortasse para uma hora e 40 minutos. Resisti com unhas e dentes,
mas estava meio perdido, me sentindo sozinho, sem interlocutor.
Foi então que o Raduan me disse:
"Vem para cá". Ele me acolheu e
se dispôs a ser meu interlocutor.
Isso me deu o prumo necessário
para acabar o filme.
Folha - Raduan, qual foi sua primeira impressão do filme?
Raduan Nassar - Fiquei muito tocado. Fazia muito tempo que eu
havia lido o livro pela última vez e
nem me passou pela cabeça que
ele pudesse surgir assim, se impor
como uma coisa tão forte. Então,
senti que havia ali um verdadeiro
encontro. E olha que eu vi no laboratório, e só uns 40 minutos.
Carvalho - O que o Raduan chama de laboratório é a sala de montagem (risos).
Nassar - E teve outra coisinha.
Convidei meu irmão Raja, cinco
anos mais velho, para vir aqui em
casa ver o filme em vídeo. Ele veio
a contragosto, chegou aqui de
mau humor, depois de três horas
de viagem. O Luiz estava morrendo de medo dele. Ficou ali na cozinha enquanto assistíamos aqui na
sala. E ele ouviu quando meu irmão me disse baixinho: "Ele conseguiu. Ele conseguiu".
Carvalho - Foi emocionante. Os
irmãos na sala vendo o embate
entre os irmãos na tela.
Folha - Você tentou expressar,
com meios especificamente cinematográficos, a densidade poética
do livro. Como foi isso?
Carvalho - É. Não queria fazer
uma narrativa descritiva, didática, das ações. Entendia o livro como um diário do mundo interior,
das vísceras do André [protagonista de "Lavoura Arcaica"". Não
o mundo externo, a geografia, a
descrição dos ambientes. O que
me interessava era uma espécie de
cartografia da alma. Tudo no "Lavoura" acontece de dentro para
fora. Então, resolvi começar por
esses grandes extremos de escuridão e luz e tentar fazer com que a
câmera fosse o olho... Pensei em ir
desfibrando aquele personagem,
até você se identificar com ele.
Folha - Como você lidou com a
narração em primeira pessoa?
Carvalho - Usei a câmera muito
como ponto de vista. Tive que escolher com cuidado em que momento essa câmera vira para o
personagem, já que se trata de um
diário interior dele. Tudo isso era
uma reação intuitiva ao que eu lia,
porque eu percebi que o Raduan
também escrevia com essa necessidade de que aquilo fosse uma revelação, e não uma descrição.
Folha - No livro há indicações de
luz ambiente e também de uma luz
interior, subjetiva. Como você tratou isso ao filmar?
Carvalho - Eu não trataria esses
elementos em separado. Trabalhei todos eles embolados, de uma
forma meio caótica e com a ajuda
dos atores. Em certos momentos
em que a luz é uma necessidade
de subjetivação das imagens,
quem me ajudaria a traduzir esse
traço na iluminação não era apenas o fotógrafo, mas sim a maneira como o ator fazia aquela cena.
A alma dele devia estar escura, ou
clara, naquele instante.
Não tinha roteiro. Eu e os atores
líamos o livro de cabo a rabo, como se fosse a leitura de uma peça.
E o desenho emocional, a imagem
que aquilo provocava na gente era
muito clara como norteador. Não
sabíamos o que ia ser, mas sabíamos o que não queríamos: esse
naturalismo massificado, banalizado, que anda por aí, uma iluminação que não contivesse vida,
que fosse cheia de verniz, como
um comercial de TV.
Folha - Raduan, como foi voltar
ao livro tanto tempo depois?
Nassar - O livro até eu tinha me
esquecido, está muito distante. O
Luiz é que sabe de cor. Quando
comecei a reler algumas passagens, por causa da montagem, eu
pensava: "Eu escrevi isso?" (risos). Mas em nenhum momento
me situei como autor do livro que
estava sendo trabalhado em termos cinematográficos. O filme se
sobrepôs ao livro.
Eu fiquei fascinado com o trabalho do Luiz. Então, nem me interessava se pequenas passagens estavam diferentes ou não. E eu
achava também que estava muito
próximo, de certa forma. Não
através de uma linguagem enunciativa, mas através de toda aquela poética, porque eu chamo o filme do Luiz de um "poemão".
Folha - Mas não dói remexer, hoje, no conteúdo do livro?
Nassar - Não, não, mas aconteceu até uma coisa muito estranha,
porque eu estava tão distante da
literatura -eu sou um estranho
no ninho há mais de 25 anos, certo?- e de repente eu estava na sala de montagem, porque eu comecei a ficar animadinho, sabe?
E fiquei impressionado com o
processo de trabalho do Luiz.
Achei que ele entrou num processo... de inspiração, de obsessão.
Folha - E você, Raduan, não é obsessivo também?
Nassar - Eu era obsessivo também, confesso, quando escrevia.
Às vezes eu batia 20, 25 vezes a
mesma página. Sempre achei que
eu fui mais datilógrafo do que escritor [risos]. Mas o Luiz ganha de
dez a zero de mim. Uma vez cheguei ao laboratório e peguei o Luiz
mexendo na imagem do olho do
menino... Porque aquela parafernália faz coisas incríveis também,
não é? Ficou uma hora mexendo
na pupila do menino.
Folha - Antes dessa fase da montagem, como eram as conversas de
vocês?
Carvalho - A gente conversava
sobre as coordenadas do livro como um todo. Fazia uns 20 anos
que o Raduan não parava para entrar verticalmente no livro. Então,
para mim, eram encontros muito
ricos porque em determinados
momentos se saía do âmbito do
livro em si, da literatura, e Raduan
dava suas voltas. Ia para Pindorama [cidade natal do escritor], falava do pai, da mãe, da horta...
Folha - Você chegou a ir à fazenda
da filmagem, Raduan?
Nassar - Fui mais ou menos na
marra. Foi uma viagem de oito
horas de carro. Mas aí tive uma
surpresa muito agradável, tocante
até, porque encontrei o pessoal
todo muito envolvido. E, quando
eu vi a Ana do filme [a atriz Simone Spoladore], eu falei: "Pô, é melhor do que a minha" [risos].
Folha - Formou-se uma espécie
de comunidade ali na fazenda, para a preparação do filme?
Carvalho - Eu achava que o
aprendizado de lidar com a terra
era a melhor preparação corporal
que podia haver. Em vez de contratar preparadores profissionais,
nós nos agarramos aos dois peões
da fazenda, que foram os nossos
mestres da enxada, do arado, da
capina, da semeadura. Aluguei essa fazenda, esvaziei e criei como se
fosse uma estrutura de escola.
Folha - Como assim?
Carvalho - Tínhamos uma rotina
trabalhando com a terra, extraindo leite das vacas, depois fazíamos improvisações, ioga, aulas de
culinária árabe, de bordado árabe, do idioma árabe. Tínhamos
aula de dança e visitas de palestrantes que iam falar sobre a obra
do Raduan, sobre o tema principal da obra, que é a parábola do filho pródigo. O Leonardo Boff, por
exemplo, falou sobre a tradição
cristã. Passamos quatro meses na
fazenda, antes de filmar.
Folha - Como você traduziu em cinema seu desejo de manter o impacto da obra?
Carvalho - Todo o aparato técnico foi posto a serviço da improvisação dos atores. Não sabíamos se
o ator ia ficar sentado olhando para a frente ou se ia levantar e sair
andando. Como eu queria preservar esse seu impulso vital, antes
de filmar eu marcava, esquadrinhava o quarto da pensão, definindo pontos de foco possíveis,
onde o ator poderia ir num momento de emoção.
Fazendo um paralelo com o
processo poético, primeiro tem
um fluxo solto e depois, na montagem, é que há uma reflexão sobre esse fluxo.
Folha - Agora com o filme pronto,
Raduan, você está revivendo a expectativa de quando publicou o livro?
Nassar - Quando você publica
um livro, está se expondo. Isso é
uma coisa com a qual não sei lidar
até hoje. Eu me sinto envolvido
com o lançamento do filme, mas é
um sentimento diferente de
quando publiquei o livro. Sou um
ancião hoje [risos". Tenho um outro olhar sobre tudo isso.
Quando vejo meu nome no jornal, ainda hoje, eu tenho um choquezinho esquisito, me provoca
um mal-estar. Mas não sou o
mesmo. Quando escrevi, tive
muito envolvimento emocional,
vivia um transe maluco. Tomava
café, duas garrafas por dia.
Folha - É verdade que a cena do
diálogo final entre pai e filho foi a
que mais emocionou você?
Nassar - Toca-me, de fato. Se você me perguntar por que, não sei.
É engraçado que até discuti com o
Luiz, porque há um momento no
filme em que o pai bate no filho
com uma vara de marmelo. Meu
pai nunca pegou uma vara para
me bater. Claro, o personagem
não sou eu, mas de alguma forma
também me projetei nesse exemplo. Como fazem mil conclusões...
Eu já vou ficar, depois do filme,
com fama de masturbador inveterado [risos].
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