São Paulo, quinta-feira, 24 de outubro de 2002

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26ª MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO

"INTERVENÇÃO DIVINA"

Diretor usa piadas visuais para destruir estereótipos do conflito entre palestinos e israelenses

Elia Suleiman desmonta terror com humor

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN

Como desarmar a belicosidade já quase secular entre palestinos e israelenses? Em "Intervenção Divina", uma resposta repousa silenciosa sobre cada imagem: com humor.
A aposta parece absurda, e é nisso que consiste o rigor desse segundo longa-metragem do cineasta palestino Elia Suleiman, que recebeu o prêmio do júri em Cannes neste ano pela ousadia.
Constituído de três partes, construídas como capítulos ("Nazaré", "Posto de Fronteira", "Jerusalém"), "Intervenção Divina" formula uma imagem totalmente diversa desses espaços em disputa, que estamos viciados em ver como um desfile sem fim de ataques suicidas, retaliações militares, sangue e dor.
Na primeira parte, a questão central é a da convivência, jamais pacífica, entre vizinhos. Ninguém parece ter outro objetivo senão destruir a paz alheia. E isso, observe-se, entre os próprios palestinos.
Logo na primeira cena, um homem vestido de Papai Noel é perseguido por um grupo de garotos que, por fim, dão-lhe uma facada. Um senhor abre a porta de casa e joga seu lixo no terraço da vizinha. Um outro saúda os amigos da cidade com palavrões impublicáveis.
Construído a partir de uma série de gags estritamente visuais, quase sem diálogos, esse capítulo já demonstra a que veio: Suleiman joga com o humor, mas não está para brincadeiras.
Na segunda parte, um casal isolado pelas eternas disputas territoriais (ele vive em Jerusalém, ela, em Ramallah) só se encontra numa espécie de estacionamento diante de um posto de controle militar. Aqui, a velha fórmula "faça amor, não faça guerra" recupera todo o seu sentido.
Na terceira, ainda sem abandonar o humor, o personagem que o próprio Suleiman interpreta explode o sentido da rigidez militar com um balão com uma estampa de Arafat sobrevoando os céus de Jerusalém. Ou simplesmente transforma um simples caroço de fruta em uma bomba. São situações que recuperam o burlesco na dimensão forjada por um Buster Keaton, no qual as consequências extrapolam por completo os atos mais simples.
Para platéias brasileiras, o filme pode parecer de difícil entendimento, pois, além da fragmentação narrativa, parte de muitas situações locais às quais nos faltam conhecimentos.
O mais importante, contudo, é perceber como Suleiman desmonta os estereótipos que determinam nossa percepção do conflito entre palestinos e israelenses. Numa inversão do sentido habitual, ele se apropria de clichês visuais (da publicidade, da moda, do videoclipe, do filme de ação, da coreografia de musicais) para deslocar nosso modo de ver aquela situação: no lugar dos terroristas do Jihad, entra uma guerreira ninja; no lugar da fuzilaria contra postos militares, uma mulher caminha como se estivesse em um desfile de moda; no treinamento de paramilitares, os soldados atiram contra os alvos, mas não se esquecem de demonstrar suas habilidades coreográficas.
Essa intenção é assumida pelo diretor: "O que acontece quando construímos imagens que criticam as representações lineares? Criamos imagens que são amálgamas, que não têm um centro, que são abertas e democráticas para o espectador. Minha tarefa como cineasta é trabalhar duro para multiplicar as camadas de sentido e de leituras de uma imagem, criar tanto quanto possível um espaço poético que tenda para a abstração e que escape às definições rígidas", diz Suleiman.
Ao fim de cada cena, quando se perguntar: afinal, qual o significado disso?, contente-se com a impressão de absurdo.


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