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BERNARDO CARVALHO
Arte, terceiro setor
O problema começa quando se reduz a arte ao possível, sob o pretexto de que se trata de fazer política
LOGO NA entrada da 27ª Bienal
de São Paulo, há um cercado
de arame. É uma instalação da
sul-africana Jane Alexander. Dentro do cercado, há outra cerca que
encerra um gramado onde está uma
escultura em forma de ser híbrido,
entre ave de rapina e humano. As
duas cercas de arame formam um
corredor estreito, entre o público e o
monstro, com machetes espalhados
pelo chão. A curadora Lisette Lagnado considera a obra uma das mais
importantes da exposição: "É emblemática dos anos do apartheid".
Os machetes representam "as armas brancas que mataram os negros
nessa época em que brancos e negros não podiam viver juntos", diz
Lagnado em entrevista ao UOL.
"Como viver junto" é o tema desta
Bienal. E Jane Alexander é uma artista contra o apartheid.
Mais adiante, os argentinos do
projeto Eloisa Cartonera montaram
uma banquinha onde confeccionam
livros artesanais. Num cartaz, o visitante lê: "Projeto auto-sustentável".
No segundo andar, o colombiano Alberto Baraya expôs o molde de uma
seringueira, feito de látex, resultado
de sua residência no Acre e da convivência com ex-seringueiros. No terceiro andar, além da sala onde estão
expostos modelos da Daspu (grife
criada pelas prostitutas da ONG Davida), o Long March Project procura
desmistificar o lugar do artista, em
favor do artesão. O projeto chinês
insinua, por meio de uma série de
papéis recortados (uma das formas
mais tradicionais e disseminadas de
artesanato na China), que todo
mundo é artista.
Diante dessas manifestações, pode parecer difícil entender a razão
da polêmica criada pela obra do coletivo dinamarquês Superflex, que
ficou fora da mostra (o trio de artistas propunha reapropriar-se dos ingredientes de um refrigerante e, eliminando a marca, converter o lucro
aos produtores comunitários). O
trabalho estava adequado às diretrizes da Bienal, mas esbarrava em
questões legais.
Como nas outras obras citadas,
pode até haver confusão nas idéias
do Superflex, mas nada para causar
surpresa ou espanto. O projeto é feito das melhores intenções. Ninguém que pisa no prédio do Ibirapuera é a favor do apartheid, nem
contra o trabalho comunitário e as
ações culturais na periferia; ninguém é contra a reciclagem industrial, nem a favor do desmatamento
da floresta e da exploração dos trabalhadores pelo capitalismo selvagem; ninguém é contra os direitos
das minorias e a inclusão dos excluídos. Nesses pontos, estamos todos
de acordo, vivendo juntos em consenso.
O mundo das ONGs é o da falência
do Estado, mas também o da desilusão, do desencanto e do pragmatismo. É o contrário do encantamento
da arte moderna, quando ainda se
acreditava no impossível e no inominável, na potência libertária de
uma individualidade autoral e irredutível. Este é o mundo do terceiro
setor, onde já não é concebível nem
revolução nem utopia. Não é à toa
que o fotojornalismo tenha uma
presença tão marcante nesta Bienal.
Só resta fazer o que é possível, por
menor que seja, com o patrocínio e o
financiamento de empresas conscientes e filantrópicas. Da política,
resta a retórica, o assistencialismo, a
banalidade do consenso, o lugar-comum e as pequenas iniciativas, nem
por isso menos louváveis. A política
foi reduzida na prática ao que já a definia em tese: "a arte do possível". O
problema começa quando se decide
reduzir também a arte ao possível,
sob o pretexto de que se trata de fazer política. A arte é o avesso do possível.
É claro que há uma contradição
fundamental entre arte política e
mercado. O problema se acirrou no
capitalismo tardio com as proporções assumidas pelo mercado de arte num mundo de desigualdades estarrecedoras. A rigor, a arte como
forma de resistir e contrariar não
poderia estar atrelada e submissa ao
mercado. Seria hipocrisia, porém,
dizer que os artistas expostos na
Bienal, por mais políticos que se
proclamem, estejam fora do mercado. Jogando a favor do vento, a curadoria da mostra (mas não só ela, já
que a idéia está no ar) resolveu a
contradição de um modo curioso:
como não pode eliminar o mercado
no qual a própria Bienal está inserida, optou por abolir o artista e a arte,
sob o espírito das ONGs, substituindo o valor da individualidade autoral
pela ação comunitária e o bem comum. Como me disse um artista: se
viver junto é isso, me deixem sozinho. De fato, se a arte ainda for um
ato de resistência, esse é o primeiro
passo político para quem quiser ser
artista: contrariar o rebanho e a norma em nome da radicalidade perdida e inesperada do indivíduo.
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