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MARCELO COELHO
Identidades em fúria
As manifestações que têm aparecido na esfera pública estão perdendo o caráter propositivo
MEIOSE, MITOSE, cissiparidade: os nomes eu não lembro direito, mas nas aulas
de biologia do colégio o assunto era
explicado em detalhes.
Sei que as células se dividem aos
poucos, que no começo há uma duplicação dos cromossomos. Guardo
a imagem de uns desenhos em que,
como forquilhas ou asas de libélula,
eles se organizavam em pares.
O núcleo da célula se estendia e só
no fim desse processo o citoplasma e
a membrana celular se rompiam,
criando duas células onde só havia
uma.
Nos últimos tempos venho tendo
a impressão de que a sociedade brasileira passa por um mecanismo semelhante. Claro, sempre houve divisões entre pobres e ricos, brancos e
negros, Sul e Nordeste. Mas o que
antes era um dado permanente,
uma característica crônica da estrutura social, parece que agora vai se
pondo em movimento: os cromossomos se "pareiam", as metades se
encaram frente a frente, replicam-se, refletem-se e tomam distância
umas das outras.
Há várias linhas de divisão, e parecem acentuar-se a cada dia. Não faz
muito tempo, simpatizantes do PT e
do PSDB recebiam apenas o nome
de "petistas" e "tucanos". Agora,
"petralhas" e "tucanalhas" são termos que passaram ao uso comum.
Sempre tivemos adeptos de várias
religiões em nosso território; acostumei-me a um estado de coisas em
que uma pessoa não se metia com a
outra nesse tipo de assunto. Entretanto, se a rivalidade entre evangélicos, católicos e adeptos do candomblé começa a ser não apenas "vivida"
e "sentida", mas também "explicitada" e "vocalizada", tenho medo de
que daqui a um tempo estejamos
num verdadeiro pandemônio.
A polêmica em torno do Rolex de
Luciano Huck é sem dúvida outro
exemplo em que a "vocalização" das
diferenças sociais adquiriu grande
estridência, sem que as partes envolvidas tivessem tanto assim o que
dizer.
Claro que a lei vale para todos; claro que há desemprego, droga e desigualdade. Claro que é preciso haver
ação social nas favelas, que é preciso
prender infratores, que é preciso
melhorar as condições dos presídios. Em tese, é fácil concordar com
tudo isso.
Ocorre que a vontade de discordar
tornou-se mais forte do que a de
chegar a um consenso. É que as manifestações, os artigos, as entrevistas
que ultimamente têm aparecido na
esfera pública estão perdendo, a
meu ver, o caráter geral, propositivo,
civil que deveriam ter. Tornaram-se
desabafos, manifestações de impaciência, de exasperação.
Mutatis mutandis, o "cansei" das
elites é também o "senta o dedo" do
capitão Nascimento, ou não sei que
grito de guerra do gangsta rap em
versão adaptada para a periferia
paulistana.
Não se trata de alternativas políticas em confronto, nem mesmo de
expressão de diferentes pontos de
vista subjetivos: a forma dos debates, das polêmicas em curso, tem sido mais e mais calcada na questão
das identidades sociais do que na
das propostas políticas.
É como se importasse menos dizer "o que eu quero" e mais "quem
eu sou". E a posição de cada um -se
é negro, branco, pobre ou rico- conta mais do que o que cada um diz.
Faço essa avaliação sem querer
exagerar no pessimismo. Na verdade, seria estranho que numa sociedade tão desigual todo debate transcorresse em clima de chá das cinco.
Muitos setores que até recentemente não tiveram acesso a meios
públicos de expressão conseguem,
hoje, se fazer ouvir: internet, câmeras digitais, centros culturais estão
ao alcance de mais pessoas, e não haverá de ser sem raiva o recado que
têm a transmitir.
Ao mesmo tempo, entretanto, diminuiu o leque das alternativas políticas, das respostas ideológicas para
os problemas a que se dá expressão.
O resultado é uma espécie de radicalismo sem rumo, de extremismo em
striptease, de terrorismo confessional, de provocação via computador.
Durante as eleições presidenciais
o caso ficou bem claro: nos blogs e
nos e-mails, adeptos de Lula e de
Alckmin se entredevoravam com radicalidade assustadora; eram pouco
perceptíveis, entretanto, as diferenças programáticas entre os candidatos. Mas um era um, e o outro era o
outro; já era o bastante para ninguém se entender.
Nisso -numa questão de identidades, não de alternativas- parecem resumir-se muitas das polêmicas em curso. Se cada envolvido,
narcisisticamente, procura apenas
afirmar-se onde está, é natural que
não se chegue a lugar nenhum.
coelhofsp@uol.com.br
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