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TEATRO CRÍTICAS
Baiocchi satiriza a "mexicanização"
NELSON DE SÁ
da Reportagem Local
É até possível distinguir o enredo
de "Histórias que os Ossos Cantam". O presidente de uma certa
Liga dos Adoradores da Mentira
Principal reúne os discípulos, quer
dizer, o público, para a sua morte.
O ano é 2097 e o presidente e um
servidor seu, talvez um anjo, passa
ao delírio de seu último ritual público.
E então o que se tem é bem pouco
ordenado. Maura Baiocchi, que
aprendeu com Kazuo Ohno e é o
maior expoente brasileiro do butô
(a dança de gestos frágeis nascida
do encontro do teatro tradicional
japonês com a cultura ocidental),
expõe na peça bem mais do que essa influência original.
Ela escreveu, dirige, protagoniza
e fez cenário, figurinos e trilha sonora. E o que põe em cena é uma
sátira de si mesma, se tal é possível,
ou do tempo presente.
Brinca, por exemplo, com o misticismo corrente. Seu personagem
lembra que vai morrer após
"transmigrar nove vezes, como
crisântemo, digo, girassol da Rússia, abelha rainha, abelha operária,
Tarzan, osso duro de roer, Bambi,
pedra no sapato..."
Em seu encadeamento algo surreal, trata-se de uma comédia que
avança pelo pastelão, ainda que
em palhaçada consciente. Faz lembrar, até por compor-se durante
quase todo o tempo de um único
personagem discursando, o
"stand-up" americano.
E Baiocchi se prova uma comediante de qualidade. Ganha humor
com simples mudanças no tom de
voz, explora palavras de som esdrúxulo e brinca com o público,
seus "adoradores da mentira
principal". Mentira que, pelo que
indica em certa altura, é o "eu
profundo", sendo que o público
acredita em tal impostura.
A peça é carregada de assumidas
referências. A música que abre e
fecha a apresentação é "Assim Falou Zaratustra", de Richard
Strauss, a mesma que colou na
mente popular em "2001, Uma
Odisséia no Espaço". Quaisquer
discursos de alta cultura vêm ridicularizados, democratizados.
Antonin Artaud, o artista e teórico francês que inspirou a peça anterior de Baiocchi, que abriu a nova fase da artista, "desce" na protagonista e comunica seus oráculos em patético "diálogo". Por vezes dominando sua mão, para escrever, em outras sua língua, que
se perde sem comando.
"Hamlet" dá as caras, mas para
ser igualmente ridicularizado.
"Ser ou não ser", diz o presidente
moribundo, "será brevemente
uma questão ultrapassada".
Com Artaud e sua fascinação pelo ritual iconoclasta dos tarahumaras, índios mexicanos, Baiocchi
faz uma inesperada crítica à "mexicanização" da cultura "em todo
o mundo". E vai para a dança ritual ao som de uma inacreditável
"Cucurucucu Paloma".
No ápice da comédia, avança sobre Apolo e Dionísio, razão e emoção, expostos em cena como "ereção dupla", dois falos que contracenam com um fantoche que é a
própria "vagina dentada".
Apolínea apesar de dionisíaca,
Baiocchi é extremamente rigorosa
em meio à maior, como diz, "sacanagem". Na qualidade visual e
no apuro gestual da encenação, é
de um cuidado obsessivo.
Valter Felipe, que faz seu lugar-tenente e sucessor, é o exemplo acabado dessa integração ideal
que Baiocchi/presidente proclama
abertamente. O ator tem cada movimento seu milimetrado, e ao
mesmo tempo com um abuso,
uma desfaçatez fascinante.
Peça: Histórias que os Ossos Cantam
Quando: qua a sex, às 21h
Onde: Funarte, sala Guiomar Novaes (al.
Nothman, 1.058, tel. 011/862-5177)
Quanto: R$ 10
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