São Paulo, sexta, 24 de outubro de 1997.




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TEATRO CRÍTICAS
Baiocchi satiriza a "mexicanização"

NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

É até possível distinguir o enredo de "Histórias que os Ossos Cantam". O presidente de uma certa Liga dos Adoradores da Mentira Principal reúne os discípulos, quer dizer, o público, para a sua morte. O ano é 2097 e o presidente e um servidor seu, talvez um anjo, passa ao delírio de seu último ritual público.
E então o que se tem é bem pouco ordenado. Maura Baiocchi, que aprendeu com Kazuo Ohno e é o maior expoente brasileiro do butô (a dança de gestos frágeis nascida do encontro do teatro tradicional japonês com a cultura ocidental), expõe na peça bem mais do que essa influência original.
Ela escreveu, dirige, protagoniza e fez cenário, figurinos e trilha sonora. E o que põe em cena é uma sátira de si mesma, se tal é possível, ou do tempo presente.
Brinca, por exemplo, com o misticismo corrente. Seu personagem lembra que vai morrer após "transmigrar nove vezes, como crisântemo, digo, girassol da Rússia, abelha rainha, abelha operária, Tarzan, osso duro de roer, Bambi, pedra no sapato..."
Em seu encadeamento algo surreal, trata-se de uma comédia que avança pelo pastelão, ainda que em palhaçada consciente. Faz lembrar, até por compor-se durante quase todo o tempo de um único personagem discursando, o "stand-up" americano.
E Baiocchi se prova uma comediante de qualidade. Ganha humor com simples mudanças no tom de voz, explora palavras de som esdrúxulo e brinca com o público, seus "adoradores da mentira principal". Mentira que, pelo que indica em certa altura, é o "eu profundo", sendo que o público acredita em tal impostura.
A peça é carregada de assumidas referências. A música que abre e fecha a apresentação é "Assim Falou Zaratustra", de Richard Strauss, a mesma que colou na mente popular em "2001, Uma Odisséia no Espaço". Quaisquer discursos de alta cultura vêm ridicularizados, democratizados.
Antonin Artaud, o artista e teórico francês que inspirou a peça anterior de Baiocchi, que abriu a nova fase da artista, "desce" na protagonista e comunica seus oráculos em patético "diálogo". Por vezes dominando sua mão, para escrever, em outras sua língua, que se perde sem comando.
"Hamlet" dá as caras, mas para ser igualmente ridicularizado. "Ser ou não ser", diz o presidente moribundo, "será brevemente uma questão ultrapassada".
Com Artaud e sua fascinação pelo ritual iconoclasta dos tarahumaras, índios mexicanos, Baiocchi faz uma inesperada crítica à "mexicanização" da cultura "em todo o mundo". E vai para a dança ritual ao som de uma inacreditável "Cucurucucu Paloma".
No ápice da comédia, avança sobre Apolo e Dionísio, razão e emoção, expostos em cena como "ereção dupla", dois falos que contracenam com um fantoche que é a própria "vagina dentada".
Apolínea apesar de dionisíaca, Baiocchi é extremamente rigorosa em meio à maior, como diz, "sacanagem". Na qualidade visual e no apuro gestual da encenação, é de um cuidado obsessivo.
Valter Felipe, que faz seu lugar-tenente e sucessor, é o exemplo acabado dessa integração ideal que Baiocchi/presidente proclama abertamente. O ator tem cada movimento seu milimetrado, e ao mesmo tempo com um abuso, uma desfaçatez fascinante.


Peça: Histórias que os Ossos Cantam
Quando: qua a sex, às 21h
Onde: Funarte, sala Guiomar Novaes (al. Nothman, 1.058, tel. 011/862-5177)
Quanto: R$ 10



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