São Paulo, sábado, 24 de outubro de 1998

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ARTES PLÁSTICAS
Temática se apresenta a partir de telas de Theodore Géricault e chega às fotografias de Vik Muniz
Bienal questiona a sociedade canibal

CELSO FIORAVANTE
da Reportagem Local


A Ilustrada publica hoje a quarta e última parte de entrevista com o curador da 24ª Bienal, Paulo Herkenhoff. O evento parte do "Manifesto Antropófago" (1928), de Oswald de Andrade, para discutir o conceito da antropofagia como elemento formador da identidade cultural brasileira.
Herkenhoff fala aqui sobre a tela "A Jangada da Medusa", de Géricault, um dos fios condutores do evento, e sobre o nível de politização desejado pela mostra.

Folha - Como a Bienal trata a citação de imagens para que o evento não se torne apenas uma mostra de obras e artistas que citam outras obras e artistas?
Paulo Herkenhoff -
Evitamos aspectos mais simples do citacionismo de imagens, mas escolhemos uma obra sintomática, "A Jangada da Medusa", de Géricault, e suas releituras, o que permite discutir o canibalismo como metáfora de violência.
Preferi situações que deslocassem a situação da "Jangada" para outras dimensões. "Nascimento do Fascismo", de David Siqueiros, por exemplo, conduz o sentido ideológico da "Jangada" para o nosso século.
No século 19, ela é um statement a favor da abolição da escravidão. A obra de Siqueiros é contra o fascismo, que é a grande ameaça contra a liberdade em nosso século. A cena da batalha de Jeff Wall me interessou por sua dimensão absolutamente contemporânea. Sua batalha é no Afeganistão e não no mar. Jeff Wall remonta a história da arte em uma dimensão do cotidiano contemporâneo.
A "Jangada" se relaciona com a história da arte brasileira por meio de "Tiradentes Esquartejado", de Pedro Américo, mais pelo tema político que pela imagem apresentada. Ele se apropria de Géricault de uma maneira complexa.
A pena imposta a Tiradentes é aviltante e se transmite a várias gerações. É um tipo de punição ainda ligado ao antigo regime, anterior ao iluminismo e ao liberalismo, quando cada pena deveria ser a vingança mais terrível possível.
Pedro Américo estudou "Cabeças Cortadas", de Géricault, que está na Bienal, para realizar seu "Tiradentes". Elas são duas cabeças guilhotinadas, e sabemos que a guilhotina é um instrumento de democratização da pena. A partir da igualdade formal proposta pela revolução e pelo liberalismo franceses todos os indivíduos são iguais, mesmo perante a execução capital.
O afundamento do navio Medusa detona uma grande crise ética na época, em várias etapas. A primeira é o capitão que se manda, desobedecendo à regra ética de que é o último a sair do navio.
A segunda é que a França se omite em mandar socorro e por isso a jangada fica à deriva por 15 dias.
A terceira é o motim, que gerou uma carnificina que matou mais de cem pessoas. Os marinheiros se revoltam contra os oficiais. Aparece já a relação do pai que mata o filho. E, finalmente, o fato de ter havido na jangada uma prática, não programada, de canibalismo.
Folha - Louise Bourgeois diz que "A Destruição do Pai", obra que está na Bienal, é um trabalho que trata dos filhos que devoram o pai depois de um período de muita repressão. Os filhos liquidam o pai porque, na verdade, ele liquidou antes seus filhos. Você vê relação entre o trabalho de Louise Bourgeois e o drama de Ugolino, figura da "Divina Comédia", de Dante, que é obrigada a devorar seus filhos, e que comparece em "A Jangada da Medusa"?
Herkenhoff -
A relação é bem lembrada, pois são opostos que se alimentam. O que existe entre a Bourgeois e Ugolino é a sala dedicada ao século 19, curada pelo Régis Michel, do Louvre. A figura do Ugolino de Dante é resgatada com muita intensidade no século 19, na obra de Blake, Rodin e Géricault trabalhando sobre o mesmo tema.
Nela tratamos do pai que devora seus filhos, que corresponde à sociedade que devora seus filhos. O desejo de superação desse sistema de censura e castração se daria, na perspectiva freudiana, com a devoração do pai.
Esse trabalho de Bourgeois é absolutamente freudiano, e isso é colocado na análise de Robert Storr que está no catálogo.
Em Ugolino e na "Jangada" os problemas têm a mesma raiz, que é a relação de poder entre pai e filho, mas em momentos diferentes.
Folha - Em muitos pontos, a Bienal apresenta um olhar politizado sobre a história da arte. Essa Bienal é politicamente correta?
Herkenhoff -
É politizada, mas falar em "correta" é maldade, pois o correto implica em uma cautela, implica na medição dos riscos para não incorrer em represálias sociais.
Já Montaigne, que estabelece a primeira interpretação do canibalismo, percebe as diferenças culturais que o termo comporta. Ele compreende o caráter simbólico do canibalismo e percebe que a violência política na França é mais irracional e brutal que o gesto ritual e solene de sacrificar um indivíduo e alimentar-se dele.
O canibalismo pode ser lido como uma metáfora da brutalidade política. Que sociedade é essa que devora seus filhos?, pergunta Régis Michel. Isso se reflete em obras como as de Claudia Andujar, Vik Muniz ou Cildo Meireles.
A nuance política é presente e sutil. Existe sim o cálculo de pensar a sociedade que consome seus filhos. Este é o momento para trazer artistas que reflitam sobre essas questões com arte de altíssima qualidade, como na obra de Vik Muniz, em que crianças são açúcar, chocolate e lixo.
Folha - As muitas curadorias envolvidas na Bienal compreenderam a sua proposta?
Herkenhoff -
Os grandes segmentos da Bienal devem estabelecer conexões entre si. Isso significa que existe uma leitura imediata e sintética e leituras que passam por meandros e capilaridades que podem ser entendidas como as camadas de uma arqueologia curatorial.
No caso das mostras de "Roteiros", a montagem busca compor uma idéia de que não seria um conjunto de sete exposições independentes e separadas, uma reunião de curadores, mas que também não é uma exposição coletiva. A idéia foi compor o nucleamento dos sete segmentos com dispersões calculadas para assim não dar um caráter estanque a cada segmento.
No processo de formulação da Bienal, em que houve uma inovação, devo dizer, existe um conceito que vai se desdobrando e que é cheio de riscos. Mas assumir os riscos é o que vai dar riqueza à discussão. Houve momentos em que diálogos já estabelecidos precisaram ser negociados.
Em "Roteiros" houve uma adesão voluntária à questão da antropofagia, que é central para alguns e na tangência para outros.
Folha - Com essa Bienal você pretende apresentar uma identidade verdadeiramente brasileira, que não seja americanocêntrica ou eurocêntrica?
Herkenhoff -
Eu me interesso muito por multiculturalismo e globalização, mas não quero fazer disso um tema de minhas preocupações fundamentais. Eu não gostaria de ter na Bienal um centro de pensamento que fosse a reiteração de questões já discutidas no Norte.
Eu queria que ela tivesse um ponto de partida traçado a partir da cultura brasileira, mas entendendo que a nossa cultura é filiada à cultura ocidental, mas com tensões, diferenças e singularidades.
Procurei um momento denso na tradição da história da cultura brasileira. Poderia ser o barroco, modernismo, neoconcretismo... A antropofagia se impõe por esse seu aspecto poliédrico. A Bienal é uma experiência poliédrica. Ela não tem uma curadoria unívoca, mas compartilhada por milhares de olhares.

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