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ARTES PLÁSTICAS
Temática se apresenta a partir de telas de Theodore Géricault e chega às fotografias de Vik Muniz
Bienal questiona a sociedade canibal
CELSO FIORAVANTE
da Reportagem Local
A Ilustrada
publica hoje a
quarta e última
parte de entrevista com o curador da 24ª Bienal, Paulo Herkenhoff. O evento parte do "Manifesto Antropófago" (1928), de Oswald de Andrade,
para discutir o conceito da antropofagia como elemento formador
da identidade cultural brasileira.
Herkenhoff fala aqui sobre a tela
"A Jangada da Medusa", de Géricault, um dos fios condutores do
evento, e sobre o nível de politização desejado pela mostra.
Folha - Como a Bienal trata a citação de imagens para que o evento
não se torne apenas uma mostra
de obras e artistas que citam outras obras e artistas?
Paulo Herkenhoff - Evitamos aspectos mais simples do citacionismo de imagens, mas escolhemos
uma obra sintomática, "A Jangada
da Medusa", de Géricault, e suas
releituras, o que permite discutir o
canibalismo como metáfora de
violência.
Preferi situações que deslocassem a situação da "Jangada" para
outras dimensões. "Nascimento
do Fascismo", de David Siqueiros,
por exemplo, conduz o sentido
ideológico da "Jangada" para o
nosso século.
No século 19, ela é um statement
a favor da abolição da escravidão.
A obra de Siqueiros é contra o fascismo, que é a grande ameaça contra a liberdade em nosso século. A
cena da batalha de Jeff Wall me interessou por sua dimensão absolutamente contemporânea. Sua batalha é no Afeganistão e não no
mar. Jeff Wall remonta a história
da arte em uma dimensão do cotidiano contemporâneo.
A "Jangada" se relaciona com a
história da arte brasileira por meio
de "Tiradentes Esquartejado", de
Pedro Américo, mais pelo tema
político que pela imagem apresentada. Ele se apropria de Géricault
de uma maneira complexa.
A pena imposta a Tiradentes é
aviltante e se transmite a várias gerações. É um tipo de punição ainda
ligado ao antigo regime, anterior
ao iluminismo e ao liberalismo,
quando cada pena deveria ser a
vingança mais terrível possível.
Pedro Américo estudou "Cabeças Cortadas", de Géricault, que
está na Bienal, para realizar seu
"Tiradentes". Elas são duas cabeças guilhotinadas, e sabemos que a
guilhotina é um instrumento de
democratização da pena. A partir
da igualdade formal proposta pela
revolução e pelo liberalismo franceses todos os indivíduos são
iguais, mesmo perante a execução
capital.
O afundamento do navio Medusa detona uma grande crise ética
na época, em várias etapas. A primeira é o capitão que se manda,
desobedecendo à regra ética de
que é o último a sair do navio.
A segunda é que a França se omite em mandar socorro e por isso a
jangada fica à deriva por 15 dias.
A terceira é o motim, que gerou
uma carnificina que matou mais
de cem pessoas. Os marinheiros se
revoltam contra os oficiais. Aparece já a relação do pai que mata o filho. E, finalmente, o fato de ter havido na jangada uma prática, não
programada, de canibalismo.
Folha - Louise Bourgeois diz que
"A Destruição do Pai", obra que está na Bienal, é um trabalho que
trata dos filhos que devoram o pai
depois de um período de muita repressão. Os filhos liquidam o pai
porque, na verdade, ele liquidou
antes seus filhos. Você vê relação
entre o trabalho de Louise Bourgeois e o drama de Ugolino, figura
da "Divina Comédia", de Dante,
que é obrigada a devorar seus filhos, e que comparece em "A Jangada da Medusa"?
Herkenhoff - A relação é bem
lembrada, pois são opostos que se
alimentam. O que existe entre a
Bourgeois e Ugolino é a sala dedicada ao século 19, curada pelo Régis Michel, do Louvre. A figura do
Ugolino de Dante é resgatada com
muita intensidade no século 19, na
obra de Blake, Rodin e Géricault
trabalhando sobre o mesmo tema.
Nela tratamos do pai que devora
seus filhos, que corresponde à sociedade que devora seus filhos. O
desejo de superação desse sistema
de censura e castração se daria, na
perspectiva freudiana, com a devoração do pai.
Esse trabalho de Bourgeois é absolutamente freudiano, e isso é colocado na análise de Robert Storr
que está no catálogo.
Em Ugolino e na "Jangada" os
problemas têm a mesma raiz, que é
a relação de poder entre pai e filho,
mas em momentos diferentes.
Folha - Em muitos pontos, a Bienal apresenta um olhar politizado
sobre a história da arte. Essa Bienal
é politicamente correta?
Herkenhoff - É politizada, mas
falar em "correta" é maldade, pois
o correto implica em uma cautela,
implica na medição dos riscos para
não incorrer em represálias sociais.
Já Montaigne, que estabelece a
primeira interpretação do canibalismo, percebe as diferenças culturais que o termo comporta. Ele
compreende o caráter simbólico
do canibalismo e percebe que a
violência política na França é mais
irracional e brutal que o gesto ritual e solene de sacrificar um indivíduo e alimentar-se dele.
O canibalismo pode ser lido como uma metáfora da brutalidade
política. Que sociedade é essa que
devora seus filhos?, pergunta Régis
Michel. Isso se reflete em obras como as de Claudia Andujar, Vik
Muniz ou Cildo Meireles.
A nuance política é presente e sutil. Existe sim o cálculo de pensar a
sociedade que consome seus filhos. Este é o momento para trazer
artistas que reflitam sobre essas
questões com arte de altíssima
qualidade, como na obra de Vik
Muniz, em que crianças são açúcar, chocolate e lixo.
Folha - As muitas curadorias envolvidas na Bienal compreenderam a sua proposta?
Herkenhoff - Os grandes segmentos da Bienal devem estabelecer conexões entre si. Isso significa
que existe uma leitura imediata e
sintética e leituras que passam por
meandros e capilaridades que podem ser entendidas como as camadas de uma arqueologia curatorial.
No caso das mostras de "Roteiros", a montagem busca compor
uma idéia de que não seria um
conjunto de sete exposições independentes e separadas, uma reunião de curadores, mas que também não é uma exposição coletiva.
A idéia foi compor o nucleamento
dos sete segmentos com dispersões calculadas para assim não dar
um caráter estanque a cada segmento.
No processo de formulação da
Bienal, em que houve uma inovação, devo dizer, existe um conceito
que vai se desdobrando e que é
cheio de riscos. Mas assumir os riscos é o que vai dar riqueza à discussão. Houve momentos em que diálogos já estabelecidos precisaram
ser negociados.
Em "Roteiros" houve uma adesão voluntária à questão da antropofagia, que é central para alguns e
na tangência para outros.
Folha - Com essa Bienal você pretende apresentar uma identidade
verdadeiramente brasileira, que
não seja americanocêntrica ou eurocêntrica?
Herkenhoff - Eu me interesso
muito por multiculturalismo e globalização, mas não quero fazer disso um tema de minhas preocupações fundamentais. Eu não gostaria de ter na Bienal um centro de
pensamento que fosse a reiteração
de questões já discutidas no Norte.
Eu queria que ela tivesse um
ponto de partida traçado a partir
da cultura brasileira, mas entendendo que a nossa cultura é filiada
à cultura ocidental, mas com tensões, diferenças e singularidades.
Procurei um momento denso na
tradição da história da cultura brasileira. Poderia ser o barroco, modernismo, neoconcretismo... A antropofagia se impõe por esse seu
aspecto poliédrico. A Bienal é uma
experiência poliédrica. Ela não
tem uma curadoria unívoca, mas
compartilhada por milhares de
olhares.
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