São Paulo, segunda, 24 de novembro de 1997.




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POLÊMICA
O compositor fala das reportagens e análises sobre seu livro, 'Verdade Tropical', publicadas no caderno 'Mais!'
Caetano Veloso rebate críticas da Folha

Rosane Bekierman/Folha Imagem
Caetano Veloso rebate críticas da Folha em seu escritório no Leblon, Rio de Janeiro


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

A Folha publicou, no caderno "Mais!" do dia 2 de novembro, uma série de reportagens e análises a propósito do lançamento de "Verdade Tropical", o livro re cém-lançado de Caetano Veloso. O artista comentou sobre três de las durante entrevista ao jornal, no Rio, na última quinta-feira.
A primeira, em duas partes -"O Tropicalismo no Cárcere" (pág. 5-9) e "A Hidra Não Ouvia Rock" (pág. 5-11)-, questiona trecho do livro (leia nesta página) que diz que os tropicalistas eram os mais profundos inimigos do re gime militar brasileiro.
"A Hidra Não Ouvia Rock" traz entrevista com o general Antonio Bandeira e o coronel Geraldo Amaral Navarro, que estavam na cúpula do Ministério do Exército à época da prisão de Caetano e Gil berto Gil, em 1968.
"Eles não tinham importância. A prisão foi uma operação absolu tamente desnecessária.", disse à Folha o general Bandeira.
O segundo texto comentado, "Sem Mentira Não se Vive", do escritor e professor de ciências so ciais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) Gilberto Felis berto Vasconcellos, é uma crítica feroz a "Verdade Tropical".
Por fim, o artigo "O Tropicalis mo no Poder", de Marcos Augus to Gonçalves, editor de Domingo da Folha, analisa o livro e a trajetó ria de Caetano desde a rebeldia dos anos 60 até a posição hegemônica que ocupa na MPB dos anos 90.
Leia abaixo as reações de Caeta no aos textos do "Mais!".

Folha - Uma reportagem da Fo lha contestou sua afirmação no li vro de que os tropicalistas foram os mais profundos opositores do regime militar. O que você diz?
Caetano Veloso -
Eu li a repor tagem. Fiquei igualzinho depois que li, como estava antes. Achei uma reportagem um pouco fraca.
Em primeiro lugar, ir perguntar a um chefe (militar), que vai ter a opinião correta, que vai dizer o que foi, já acho isso humilhante.
Em segundo lugar, de onde saiu a idéia de que defendo no meu li vro a tese, como está dito no jor nal, de que nós tropicalistas éra mos os opositores mais profundos do regime militar? Conto que é uma ilusão inevitável, que passou e que apareceram confirmações disso, e que são lembranças mi nhas de fatos reais. Eu tive aqueles diálogos que descrevi, entendeu?
Parece que o sujeito vai pergun tar a um general, que diz: "Que nada, ninguém ligava para esses caras". No entanto, eu fiquei dois meses na cadeia, numa solitária a maior parte do tempo. Fiquei in comunicável até quase o fim da prisão. Alguém decidiu isso.
Fiquei quatro meses confinado em Salvador, tendo que me apre sentar a um coronel todos os dias, e dois anos e meio exilado. E me levaram pessoalmente para dentro do avião. Isso é fato. Acabou.
Eu não tenho agora que esperar um jornalista perguntar a um ge neral: "Vem cá, o Veloso diz que os mais profundos opositores dos senhores eram eles. O senhor acha isso?". O cara diz: "Quem? Caeta no Veloso? Tropicalismo? Não sei nem o que é".
Já fui ao Dops olhar o que tem sobre nós. Dizia que eu andava com Marta Alencar, com gente de esquerda, que eu era músico. Sei disso. Saí na passeata dos 100 mil.
Que havia uma hostilização nos sa por parte dos manifestantes de esquerda, havia, muito grande. Na verdade a gente às vezes se julgava a esquerda da esquerda, uma ul traesquerda, e às vezes mais defen sor do mercado. Ou uma combi nação das duas coisas.
Que idéia é essa que eu defendo tese? Aí o cara fala: "Não, os mais profundos eram os da luta arma da". Justamente eu digo que nós, pequenos burgueses que fazíamos música, olhávamos os caras da lu ta armada como heróis. Víamos de longe, porque sentíamos uma identificação remota.
Não sou maluco, não, para me fazer de bobo. Aquilo ali é só uma reportagem, bastante fraca, sem muito fundamento, para mim. Não tem nada, é ruim jornalistica mente, não tem muita força.
Mas então que tenha. As pessoas também precisam saber se alguém ainda tem algum tipo de ilusão. É bom que leiam. Mas não é um mo do bom de esclarecer as coisas. Não me agregou nada, eu já sabia de tudo aquilo, e não tem que per guntar ao Médici. Não tem que exumar o Médici, perguntar a ele se o maior inimigo dele era Gilber to Gil ou Geraldo Vandré. Não dá, entendeu? Pelo amor de Deus!
Folha - Mas, fazendo uma con cessão ao general, quem era mais perigoso ao regime, Carlos Lamar ca e Carlos Marighella ou Caetano Veloso e Gilberto Gil?
Veloso -
Não faço concessão. É o óbvio. Eles mataram essas pessoas. Eles executaram es sas duas pes soas. Como pode haver dú vida? De onde viria talvez uma dúvida quanto a isso? Não entendo.
Folha - No li vro você diz que era, com Gil, o mais pro fundo inimigo do regime.
Veloso -
Di go o que vivi. Já citei outras coisas que digo no livro que re lativizam o momento que pensei isso, que era uma coisa pensável. Também não é assim. Não é descartável.
Que valor tem a música popular? Qual o sig nificado de tudo isso? Não sei. Nin guém sabe. É a busca da verdade tropical. Isso está em princípio em aberto. Não tenho opinião defini da, não tenho uma tese sobre isso.
Disse que, entre outras coisas que aparecem em diversos lugares do livro, em determinado momen to foi isso que vigorou na minha mente. Eu me vi como tal.
Há momentos piores. Quando falo que desço e enfrento os milita res na rua em São Paulo. Digo que nesse momento me senti superior a Chico Buarque, Edu Lobo. Você acha que eu quero dizer que sou superior a essas pessoas? Eu estou contando, me abrindo, me entre gando, dizendo o que era a cabeça do que acompanhava o que estava se passando ali. Não há nenhuma tese de que o tropicalismo era a oposição mais profunda.
De todos os músicos populares, o que eles mais odiavam era Geral do Vandré, porque eles tinham um problema pontual com Vandré, que mencionava os militares na quela canção. Virou questão de honra. Eles queriam matar o Van dré -pelo menos diziam isso quando a gente estava preso.
Mas o fato é que Vandré fugiu, deu para sair, e não aconteceu. O fato é que tudo que descrevi aqui aconteceu comigo e com Gil. São três anos e meio da vida da gente, no mínimo. É fogo, e só conosco. Isso foi fundo.
Durante a prisão houve um sar gento imbecil que falou daquela maneira; depois houve um capitão muito intelectualizado que falou de outra maneira. E que confirma va isso. As pessoas que nos pren diam, tal como esse general que foi entrevistado e o major que me in terrogava, não entendiam por que a gente estava preso. Ficavam abis mados. Mas alguém entendia, al guém decidiu isso.
Aí o general falou para o seu co lega: "Qualquer um podia pren der". No entanto, fomos buscados em SP, que é região do 2º Exército, e trazidos para o 1º Exército. Assis timos a um jantar de um general no Ministério do Exército, onde fi camos mais de uma hora. Depois fomos levados a uma solitária, on de ficamos mais de uma semana.
"Qualquer chefe de quartel po deria ter comandado a prisão." Como? Como? Isso foi alguma coi sa decidida. Se eu moro no 2º Exér cito, não posso ser preso pelo 1º. Eles têm que estar combinados pa ra que isso aconteça e não haja um escândalo e um problema entre eles. Não houve.
O Randal Juliano foi mandado buscar e disseram: "Não, não vai". O major ficou irado, disse na mi nha cara que estava envergonha do, que era uma vergonha, porque exigiu a acareação e eles não man davam o homem.
Então isso é a verdade, são os fa tos, foi o que se deu. O que você quer que eu sinta diante daquela mixaria daquela reportagem? Não sinto nada.
Folha - Talvez se torne uma ques tão semântica -a frase dita no li vro é tomada de forma tão rigoro sa até porque o livro se chama "Verdade Tropical".
Veloso -
Mas quando eu falei que éramos os inimigos mais pro fundos?
Folha - Está escrito numa página do livro.
Veloso -
O livro não é para de fender essa tese. Isso é má-fé. É não querer ler o livro ou tirar dele uma coisa que não é o que o livro diz.
Folha - Você não acha má-fé qualquer coisa que se diga ao con trário do que você disse?
Veloso -
Não, de forma nenhu ma. Eu sou excelente discutidor. Isso que vi no seu jornal é má-fé, não dá para mim. Mas o jornal tem que viver disso.
Folha - O arti go de Gilberto Vasconcellos pode se encai xar nisso?
Veloso -
Não. Eu havia lido o livro dele e gostei, sob certos aspec tos. Sobretudo na importância que ele dá ao Iseb em relação ao Cebrap. Eu simpatizo com isso, fui brizo lista quando o brizolismo foi possível. Ago ra, o candidato a presidente de Glauber Rocha era Antônio Carlos Maga lhães. Isso é fo foca que lhe conto. Ele era mais bairrista do que eu.
Eu discorda va, mas achava interessante, como tudo que o Glauber fala va. Gosto do Antônio Car los, ele é o Bri zola da direita. Brizola é o An tônio Carlos da esquerda.
Gilberto Vas concellos é in teressante, mas escreveu um livro sobre música popular. Hoje ele está revoltado contra essa música. Acho o livro simpático em alguns aspectos. Adoro o que ele pegou de Glauber falando sobre FHC. O proveito que tira é muito bom.
Folha - O artigo não chegou a lhe aborrecer, então?
Veloso -
Não, porque é uma re petição do livro, que já tinha me aborrecido muito menos que essa aparente sensatez equilibrada de perguntar ao general. O negócio do Gilberto é engraçado.
Folha - E o artigo de Marcos Au gusto Gonçalves?
Veloso -
É ruim à beça. Repre senta isso tudo que falei de ruim da imprensa. Desde o "Roda Viva", ele fala da revista "Caras". Não fa lo há oito anos com a revista "Ve ja". Processei a "Amiga" e ganhei.
Fica essa coisa da "Caras". Eu sou uma celebridade. Vou fingir que não sou para agradar aos sub sofisticados? Isso é uma besteira.
Depois ele dá uma visão de FHC, de que estou no poder com ele. Que diabo? Ele é presidente, não tenho nada com isso. Sou livre, fa lo o que quiser de quem eu quiser. Que poder coisa nenhuma.
Há coisas que são evidências que as pessoas por doença querem omitir. "Tieta do Agreste" é um dos melhores filmes já feitos no Brasil em todos os tempos. Quan do vejo isso ser mal situado da rea lidade das coisas, me sinto só.
"O Globo" botava o bonequi nho dormindo. Eu tenho visto ou tros filmes que eles botam o bone quinho aplaudindo e fico me per guntando: por que será que fize ram aquilo com "Tieta"? Porque é bom, porque está entre os dez me lhores filmes já feitos no Brasil.
Dizer que eu hoje em dia estou aburguesado? Quando o tropica lismo estourou, comprei uma mercedes e passei a morar num apartamento de luxo na avenida São Luís, quando o centro de São Paulo ainda era respeitável.
Vai falar da minha burguesia agora, porque apareci na "Caras"? Não entendi. Isso é burguesia? Não. Somos emergentes, países emergentes. Temos que saber ser emergentes. É por isso que eu luto. Eu sou rebelde. Jornalismo é um problema, é um tipo de poder muito mais chato até que o poder político. Mas é bom, precisa ter.



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