São Paulo, segunda, 24 de novembro de 1997.




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ERUDITO
Brahms de Harnoncourt decepciona

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Nikolaus Harnoncourt fundou o Concentus Musicus de Viena em 1953, uma orquestra de câmara dedicada à música do barroco.
Ficou conhecido como um dos mais importantes estudiosos e intérpretes da música antiga, misto de regente e musicólogo, ou pesquisador-artista, debruçado sobre minúcias de partituras e tratados, para reinventar modo mais "autêntico" de se escutar essa música.
Suas gravações das cantatas de Bach, assim como, mais tarde, das sinfonias de Mozart e Haydn, são um modelo de rigor e vigor, liberando as composições do século 18 de formas de interpretação que são as do século seguinte, mas que, até pouco tempo, eram tidas como o modo "natural" de executar a música de todos os períodos.
O princípio básico de encontrar a técnica instrumental adequada e de reimaginar o fraseado e o ritmo de acordo com as convenções de cada época pode ser aplicado não só ao barroco, mas também à música do romantismo e do início do século 20, que já vai tão longe.
Harnoncourt é hoje o regente elogiado das sinfonias de Beethoven, Schumann e Schubert, segundo padrões da nova musicologia.
Apresenta agora sua versão da obra sinfônica de Johannes Brahms (1833-97): quatro sinfonias, as "Variações sobre um Tema de Haydn", a "Abertura Festival Acadêmico" e a "Abertura Trágica", sempre com a Orquestra Filarmônica de Berlim. Outro CD registra sua interpretação do "Concerto para Violino", com o solista Gidon Kremer, e o "Concerto Duplo, para Violino, Violoncelo e Orquestra", com Kremer, Clemens Hagen e a Orquestra do Concertgebouw, de Amsterdã.
Dizer que as gravações são "interessantes" -mais do que empolgantes, ou comovedoras- pode soar como um clichê conservador, mas talvez não haja outra palavra mais precisa para a combinação de respeito, curiosidade e um certo desapontamento provocado pelo Brahms de Harnoncourt.
A coleção abre com uma interpretação linda das "Variações", traduzidas para o domínio da música de câmara, mas sem perder a compostura de grande orquestra.
O mesmo equilíbrio infelizmente não se sustenta nas sinfonias. Na longa entrevista do encarte, Harnoncourt fala do esforço para reencontrar uma "simplicidade" em Brahms, "como quem retira a pátina de estátuas antigas ou velhas peças de mobília".
Na prática, isso significa reduzir os "excessos" de expressividade, costumeiros na performance. Mas o paradoxo é que, nesse caso ao menos, não são excessos: são o estilo apropriado de uma música no centro do repertório romântico.
Brahms pode ser o compositor "progressista" laudado por Schoenberg num ensaio exemplar ("Estilo e Idéia"), o mestre consumado da lógica musical, de uma arquitetura do texto da composição. Nem por isso tem muito a ganhar com essa nova música leve, transparente, conforme à redação medida de notas e silêncios.
É um verdadeiro choque escutar o início da "Sinfonia nš 1", com os famosos golpes de tímpano, sob os acordes imensos da orquestra, todo um espaço que se abre como uma paisagem descomunal, reduzidos a um andamento e temperamento de passeio.
"Uma bomba no telhado é sinal de melhoria", dizia a poeta Emily Dickinson. Mas nesse caso a maioria dos ouvintes provavelmente não vai concordar, e nem todos são conservadores. Vale o mesmo para a interpretação dos concertos: claríssima, aberta, sem escamotear nada, com o sentido mais preciso de direção. É uma gravação para se ter no acervo e comparar com as outras, mas não deve ser a favorita de ninguém.
Tudo somado, é bom ter em mente a frase de Emily Dickinson. De um ponto de vista pedagógico, pelo menos, ainda é preferível escutar um Brahms novo, mais ou menos convincente de acordo com as convicções musicológicas de cada um, a regravar as sinfonias como todo mundo já ouviu.
Mas cabe indicar o lançamento, discreto, com uma orquestra menos prestigiosa -a Scottish Chamber Orchestra-, da integral das sinfonias de Brahms regidas por Charles Mackerras (Telarc). A combinação de rigor e vigor, nesse caso, tem um resultado quase oposto ao de Harnoncourt: um Brahms de câmara, também, mas com toda a paixão e os excessos da sinfonia.

Discos: Sinfonias (3 CDs); Concerto para Violino e Orquestra; Concerto Duplo, para Violino, Violoncelo e Orquestra (Brahms) Lançamento: Teldec Com: Nikolaus Harnoncourt regendo a Royal Concertgebouw Orchestra e Orquestra Filarmônica de Berlim


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