São Paulo, sexta-feira, 24 de novembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY
Para não dizer que não falei contra a censura

Assunto recorrente na mídia, nos meios artísticos de todos os calibres, a censura volta a ser discutida, tendo como gancho alguns problemas do grande Manoel Carlos com sua novela "Laços de Família". O protesto se justifica. Censura é tão ruim que nem chega a ser exclusividade das ditaduras, dos regimes de força. Os exemplos são dispensáveis.
Tenho sobre o assunto um sentimento contraditório e uma experiência pessoal razoavelmente traumática. Eliminando etapas da vida pessoal e da carreira profissional, tomo como ponto de referência os três primeiros anos em que editei a revista "Ele Ela", nos idos de 1969 a 1973. Era a primeira publicação nacional dedicada àquilo que se dizia na época ser o público masculino, ou seja, uma revista com intenções sacanas. Mas nem tanto.
Seu modelo não era a americana "Playboy", essa sim, já consagrada no mercado e existente até hoje, com diversas e bem-sacadas imitações. O modelo de "Ele Ela" era uma revista alemã, chamada "Jasmim", do grupo que editava um sucesso internacional, em diversas línguas, e que no Brasil se chamava "Pais & Filhos", dirigida em seus primeiros anos pelo José-Itamar de Freitas, que mais tarde iria fazer o "Fantástico", na Rede Globo.
A revista não chegava a ser erótica. Discutia assuntos sexuais numa época em que a pílula, a minissaia, o divórcio e o aborto faziam parte dos temas de uma humanidade que aspirava total libertação. O movimento feminista colocava o machismo no paredão e pretendia fuzilá-lo. A linha editorial de "Jasmim", e por consequência de "Ele Ela", era o direito de a mulher ter uma vida sexual equivalente à do homem, com direito inclusive ao orgasmo. Por absurdo que possa parecer, isso era uma novidade que merecia ser transformada em linha editorial.
O lema das duas publicações, a alemã e a brasileira, era: "Uma revista para ler a dois". Lançado o primeiro número, em 1969, toda a diretoria da editora foi convocada ao gabinete do comandante da região leste, no Rio de Janeiro, que funcionava no antigo prédio do Ministério da Guerra, na praça da República.
O número dois foi repensado, repaginado e reimpresso para não criar marola. Havíamos prometido, como encarte, um "Dicionário de Educação Sexual" e fomos obrigados a mudá-lo para "Dicionário de Educação Sentimental", que estava longe de ser flaubertiano.
No quinto número, já sofríamos uma censura oblíqua do regime. Eu era obrigado a levar os layouts para a aprovação no Ministério da Guerra. Mesmo assim, a capa que escolhi, publicada simultaneamente com a "Jasmim" alemã, era sobre o machismo italiano. Um homem, com cara de italiano mesmo, sem roupa, mas apenas de busto, cortado na linha do umbigo, tinha uma coroa de rei na cabeça e, atrás dele, uma mulher, presumidamente nua, o abraçava. Da mulher, só se via o rosto e uma das mãos na altura do peito do homem.
Bem, a revista saiu numa sexta-feira e, no sábado, era apreendida em todo o território nacional. Seria um prejuízo de 400 mil exemplares, tiragem confirmada pelo IVC, que uma publicação recente, da Editora Abril, confirma em belo trabalho sobre o mercado das revistas brasileiras.
Na segunda-feira, dois diretores foram levados de camburão ao gabinete do comandante da Região Militar e eu tive de passar várias semanas depondo num inquérito, cuja finalidade era explicar onde estava a outra mão da mulher que abraçava o "maschio" italiano da capa.
Pode parecer incrível, mas isso não ocorreu na Idade Média. Por acaso ou não, foi no mesmo ano em que o homem pisou na Lua (1969). Daquele número em diante, fomos obrigados a ter na redação uma censora especialmente designada pela Polícia Federal, uma senhora muito distinta, de quem me tornei amigo, e que fazia o possível para conciliar sua difícil função da maneira menos cruenta possível.
Em linhas gerais, o mesmo aconteceria com outras publicações. Para dar uma idéia do radicalismo da época, fomos obrigados a eliminar o lema de "Ele Ela" (uma revista para ler a dois) porque ao regime parecia um convite à sacanagem.
Ao se falar em censura naqueles anos, pensa-se sempre no lado político, ideológico. Mas a censura é um pega-pra-capar que, quando começa, ninguém sabe onde vai acabar. Hoje, passo pelas bancas de jornal e vejo as revistas existentes no mercado. Uma capa como aquela, do número cinco de "Ele Ela", nem seria impressa por nenhuma editora, de tão careta e sem graça. Quem mudou? O mundo, a sociedade? Ou mudamos todos, o Natal e eu, como no soneto de Machado de Assis?
Quando a censura volta a ser discutida, antes de entrar no mérito da coisa ou da pessoa censurada, penso sempre na estupidez da instituição em si. Mesmo assim, deixo para a semana a continuação do assunto, tentando mostrar que, apesar de condenável, de sua repugnante liturgia policial, a censura não conseguiu impedir que o pensamento humano fosse para a frente e para o alto. Quem sempre vai para trás e para baixo é a própria censura.


Texto Anterior: Erika Palomino: Glamour é tudo, mesmo só no trucón
Próximo Texto: Panorâmica: Peça de Plínio Marcos tem leitura segunda
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.