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CARLOS HEITOR CONY
Para não dizer que não falei contra a censura
Assunto recorrente na mídia, nos meios artísticos de
todos os calibres, a censura volta
a ser discutida, tendo como gancho alguns problemas do grande
Manoel Carlos com sua novela
"Laços de Família". O protesto se
justifica. Censura é tão ruim que
nem chega a ser exclusividade das
ditaduras, dos regimes de força.
Os exemplos são dispensáveis.
Tenho sobre o assunto um sentimento contraditório e uma experiência pessoal razoavelmente
traumática. Eliminando etapas
da vida pessoal e da carreira profissional, tomo como ponto de referência os três primeiros anos em
que editei a revista "Ele Ela", nos
idos de 1969 a 1973. Era a primeira publicação nacional dedicada
àquilo que se dizia na época ser o
público masculino, ou seja, uma
revista com intenções sacanas.
Mas nem tanto.
Seu modelo não era a americana "Playboy", essa sim, já consagrada no mercado e existente até
hoje, com diversas e bem-sacadas
imitações. O modelo de "Ele Ela"
era uma revista alemã, chamada
"Jasmim", do grupo que editava
um sucesso internacional, em diversas línguas, e que no Brasil se
chamava "Pais & Filhos", dirigida em seus primeiros anos pelo
José-Itamar de Freitas, que mais
tarde iria fazer o "Fantástico", na
Rede Globo.
A revista não chegava a ser erótica. Discutia assuntos sexuais
numa época em que a pílula, a
minissaia, o divórcio e o aborto
faziam parte dos temas de uma
humanidade que aspirava total
libertação. O movimento feminista colocava o machismo no paredão e pretendia fuzilá-lo. A linha
editorial de "Jasmim", e por consequência de "Ele Ela", era o direito de a mulher ter uma vida sexual equivalente à do homem,
com direito inclusive ao orgasmo.
Por absurdo que possa parecer, isso era uma novidade que merecia
ser transformada em linha editorial.
O lema das duas publicações, a
alemã e a brasileira, era: "Uma
revista para ler a dois". Lançado
o primeiro número, em 1969, toda
a diretoria da editora foi convocada ao gabinete do comandante
da região leste, no Rio de Janeiro,
que funcionava no antigo prédio
do Ministério da Guerra, na praça da República.
O número dois foi repensado,
repaginado e reimpresso para
não criar marola. Havíamos prometido, como encarte, um "Dicionário de Educação Sexual" e fomos obrigados a mudá-lo para
"Dicionário de Educação Sentimental", que estava longe de ser
flaubertiano.
No quinto número, já sofríamos
uma censura oblíqua do regime.
Eu era obrigado a levar os layouts
para a aprovação no Ministério
da Guerra. Mesmo assim, a capa
que escolhi, publicada simultaneamente com a "Jasmim" alemã, era sobre o machismo italiano. Um homem, com cara de italiano mesmo, sem roupa, mas
apenas de busto, cortado na linha
do umbigo, tinha uma coroa de
rei na cabeça e, atrás dele, uma
mulher, presumidamente nua, o
abraçava. Da mulher, só se via o
rosto e uma das mãos na altura
do peito do homem.
Bem, a revista saiu numa sexta-feira e, no sábado, era apreendida
em todo o território nacional. Seria um prejuízo de 400 mil exemplares, tiragem confirmada pelo
IVC, que uma publicação recente,
da Editora Abril, confirma em belo trabalho sobre o mercado das
revistas brasileiras.
Na segunda-feira, dois diretores
foram levados de camburão ao
gabinete do comandante da Região Militar e eu tive de passar
várias semanas depondo num inquérito, cuja finalidade era explicar onde estava a outra mão da
mulher que abraçava o "maschio" italiano da capa.
Pode parecer incrível, mas isso
não ocorreu na Idade Média. Por
acaso ou não, foi no mesmo ano
em que o homem pisou na Lua
(1969). Daquele número em diante, fomos obrigados a ter na redação uma censora especialmente
designada pela Polícia Federal,
uma senhora muito distinta, de
quem me tornei amigo, e que fazia o possível para conciliar sua
difícil função da maneira menos
cruenta possível.
Em linhas gerais, o mesmo
aconteceria com outras publicações. Para dar uma idéia do radicalismo da época, fomos obrigados a eliminar o lema de "Ele Ela"
(uma revista para ler a dois) porque ao regime parecia um convite
à sacanagem.
Ao se falar em censura naqueles
anos, pensa-se sempre no lado político, ideológico. Mas a censura é
um pega-pra-capar que, quando
começa, ninguém sabe onde vai
acabar. Hoje, passo pelas bancas
de jornal e vejo as revistas existentes no mercado. Uma capa como aquela, do número cinco de
"Ele Ela", nem seria impressa por
nenhuma editora, de tão careta e
sem graça. Quem mudou? O
mundo, a sociedade? Ou mudamos todos, o Natal e eu, como no
soneto de Machado de Assis?
Quando a censura volta a ser
discutida, antes de entrar no mérito da coisa ou da pessoa censurada, penso sempre na estupidez
da instituição em si. Mesmo assim, deixo para a semana a continuação do assunto, tentando
mostrar que, apesar de condenável, de sua repugnante liturgia
policial, a censura não conseguiu
impedir que o pensamento humano fosse para a frente e para o
alto. Quem sempre vai para trás e
para baixo é a própria censura.
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