São Paulo, quinta-feira, 24 de novembro de 2005

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FESTIVAL DE BRASÍLIA

Documentário coloca os sem-teto paulistanos em foco

Mocarzel retoma olhar "à margem"

EDUARDO SIMÕES
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

A tetralogia de Evaldo Mocarzel sobre a cidade à margem de São Paulo surgiu em 2003 nas filmagens de "À Margem da Imagem", seu primeiro documentário em longa-metragem. Entrevistados à época pelo diretor, catadores de papel e sem-teto preferiram não aparecer no filme. Argumentaram que a sua realidade era específica e diferente da dos moradores de rua retratados naquele primeiro filme, e que merecia um documentário só para eles.
Mocarzel, que discutia ali justamente a estetização da miséria e "o roubo da imagem" de quem vive a exclusão social, anuiu, e assim vieram os projetos de "À Margem do Lixo", "À Margem do Consumo" e "À Margem do Concreto" -este será exibido hoje à noite na mostra competitiva do 38º Festival de Brasília.
No filme, rodado em nove dias, e extraído de 140 horas de material bruto, Mocarzel continua investigando o que chama de "estratégias de sobrevivência" dos que estão à margem da capital paulista, desta vez com foco nos movimentos de moradia.
O longa tem quatro blocos: no primeiro são apresentadas as ocupações organizadas e seis de seus principais líderes, como Gegê, do Movimento de Moradia do Centro (MMC) e irmão do cantor Chico César, e Verônica Kroll, do Fórum dos Cortiços, responsável pela ocupação do antigo hotel São Paulo, no Vale do Anhangabaú, um prédio de 22 andares.
"O socialismo não morreu. Prova disso são essas pessoas que enfrentam a polícia, resistem e adquirem direito de posse para famílias carentes", ressalta Mocarzel, tirando dados da manga.
"Somente na área da praça da República, em São Paulo, há uma taxa de desocupação de imóveis que chega a 30%. É natural que estas famílias queiram ir para lá, por causa do trabalho, porque o trânsito na cidade é caótico, porque gastam muito dinheiro com transporte. E a Constituição fala do direito à moradia."
No segundo bloco do documentário, Mocarzel mostra a rotina nos "condomínios improvisados", com regras de convivência, rateio de contas, revezamento na limpeza etc.
O terceiro acompanha o trabalho destes moradores do lado de fora dos prédios ocupados, gente que engrossa as estatísticas de trabalho informal ou subemprego.
E o último bloco do documentário revela como funciona uma ação de ocupação, da pressão pelo contingente -famílias que não vão ficar lá acabam participando por solidariedade- à pressão política, que envolve instituições religiosas e a mídia.
"Nós acompanhamos desde as reuniões clandestinas até a ocupação em si", conta o diretor. Mocarzel ressalta o impacto do desfecho de seu documentário, que mostra a reação da Polícia Militar, que retira e dissipa os sem-teto com bombas de gás lacrimogêneo e afins.

Comparações
Nos últimos três anos, Mocarzel filmou cinco documentários. Além da tetralogia, rodou "Mensageiras da Luz - Parteiras da Amazônia", "Do Luto à Luta" e "Jardim Ângela", este ainda não-finalizado, que retrata o bairro na periferia de São Paulo.
Um dos mais premiados documentaristas brasileiros da recente safra - somente "À Margem da Imagem" recebeu 20 láureas em festivais nacionais e internacionais-, Mocarzel, 45, não se vê, no entanto, como uma segunda unanimidade no gênero, colado ali no ranking com Eduardo Coutinho.
"As premiações são boas, abrem as portas. Mas não me vejo como uma unanimidade", diz o diretor, que confessa sua identificação com Coutinho pelo olhar humanista.
"Sou um ficcionista, não quero só a representação do real, quero buscar histórias de vida, para futuramente fazer ficção, que é o que me levou ao cinema", diz Mocarzel. "Aprendi muito com "À Margem do Concreto". O documentário é maravilhoso porque permite uma imersão numa realidade com que não temos contato, e que tem uma inverossimilhança incrível."


O jornalista Eduardo Simões viajou a convite do festival

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