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CONTARDO CALLIGARIS
Religião: por quê ou para quê?
Em 1970, na Universidade de
Genebra, participei de um seminário sobre as provas da existência de Deus segundo são Tomás.
Continuávamos discutindo noite adentro. A existência de Deus
não era o tema do debate: ela nos
parecia depender de um ato de fé,
e fé não se discute. O objeto de
nossas conversas era a religião.
Alguns, leitores de Marx, viam
a religião como um instrumento
de poder: "ópio do povo", destinado a acalmar a massa dos oprimidos com a visão de um futuro em
que a justiça reinará entre puros
espíritos.
Outros, leitores de Freud, viam
a religião como um jeito de instituir a repressão sem a qual a vida
social seria impossível ou, então,
como um sistema de crenças destinado a atenuar o desamparo
humano, dotando o mundo, a
história e a vida de um sentido.
Eles notavam que a repressão é
sempre maior do que é preciso
(para não matar e roubar, aceito
também me proibir de transar fora do casamento). Lembravam
também que, quanto ao sentido,
seu excesso é mais daninho do
que a angústia que ele cura (extermino os heréticos para que permaneça incontestada minha versão da origem e do fim do universo).
Enfim, "marxistas", "freudianos" ou independentes, todos tentávamos responder à pergunta
"religião para quê?", como se o
"para quê" resolvesse a questão
do "por quê". É um vício da razão
moderna: parece que, se descobrirmos para que serve uma coisa
e quem se beneficia com ela, saberemos qual é sua origem e sua
causa. Mas nem tudo o que existe
é fruto de uma intenção, malévola ou não.
Lembrei-me desses debates noturnos lendo o artigo que Paul
Bloom, psicólogo da Universidade Yale, publica no número de dezembro da "Atlantic Monthly",
"Is God an Accident?" (será que
Deus é um acidente?). O artigo retoma o livro recente (2004) de
Bloom, "Descartes" Baby: How the
Science of Child Development Explains What Makes Us Human"
(o bebê de Descartes: como a ciência do desenvolvimento infantil
explica o que nos torna humanos).
Bloom trata de nosso dualismo,
ou seja, de nossa crença "espontânea" na idéia de que nossa subjetividade seja separada de nosso
corpo. O fato é que, mesmo se sou
materialista, falo sem hesitar que
"tenho" (e não que "sou") meu
corpo, como se "eu" fosse uma
coisa bem diferente dos 72 kg de
matéria que carrego habitualmente comigo.
Isso, afirma Bloom, não é efeito
de uma crença. Uma série de pesquisas mostram que crianças pequenas (sem sistemas organizados de crenças) enxergam a vida
do corpo e a vida da mente como
coisas separadas. Eis um exemplo. Um grupo de crianças assiste
a um filme em que um crocodilo
devora um ratinho. Depois disso,
o pesquisador coloca perguntas
sobre as funções corporais e as
funções psicológicas (subjetivas)
do ratinho, que obviamente está
morto. "Agora que o ratinho morreu, ele ainda precisa ir ao banheiro?" "Claro que não", dizem
as crianças. "Será que sua cabeça
funciona?" "Claro que não." "Será que ele ainda sente fome e vontade de voltar para casa?" Pois é,
"claro que sim", dizem as crianças.
Bloom observa: não somos dualistas porque acreditamos (religiosamente) numa vida além da
morte, mas, ao inverso, acreditamos numa vida além da morte
porque somos dualistas (ou seja,
porque concebemos espírito e corpo como coisas separadas). Se não
coincido com meu corpo, por que
eu não sobreviveria quando ele
morrer?
Agora, o que será que nos faz
conceber espírito e corpo como
coisas separadas? Bloom apresenta pesquisas e exemplos clínicos
que mostram o seguinte: nossa
capacidade de compreender o social (os outros, nossos semelhantes) desenvolve-se por um caminho diferente e separado do caminho pelo qual nos tornamos capazes de entender o mundo físico e
material. É como se construíssemos e usássemos dois computadores distintos: um computador
para entender, por exemplo, a
causalidade mecânica e outro
computador para entender as intenções humanas.
Nenhum terapeuta se oporá a
essa idéia: há condições (a síndrome de Asperger, por exemplo) em
que um sujeito pode sofrer de um
déficit doloroso de compreensão
das relações humanas e, ao mesmo tempo, ter uma perfeita compreensão do mundo físico e até ser
um cientista de valor.
Último argumento de Bloom:
de nossos dois "computadores",
um se desenvolve mais e invade o
terreno do outro. É o "computador" para compreender nossos semelhantes, que acabamos usando
também na hora de entender a
natureza. Aqui, as experiências
mostram com quanta facilidade
os humanos atribuem intenções
ao mundo inanimado. De fato,
todos ouvimos dizer que a Aids
seria um "flagelo divino" contra
homossexuais, drogados e promíscuos ou que o tsunami seria
uma "vingança" da natureza.
Conclusão de Bloom: tendemos
a ser religiosos (a acreditar numa
vida além da morte, num sentido
para o mundo e numa intencionalidade suprema) como efeito de
nosso desenvolvimento mental e
cognitivo.
Tudo isso não nos diz se Deus
existe ou não nem se existe ou
não vida após a morte. Mas, por
uma vez, fato notável, a religiosidade é explicada não por seu uso
ou por sua finalidade, mas como
efeito de nossa constituição psíquica.
@ - ccalligari@uol.com.br
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