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BERNARDO CARVALHO
O Natal de Robert Walser
Há quase cem anos, o suíço
Robert Walser (1878-1956)
iniciava a sua carreira literária
com "As Redações de Fritz Kocher" (1904). O livro era composto
por vários textos curtos que, segundo o prefácio do autor, lhe foram gentilmente cedidos pela
mãe zelosa de um garoto morto
pouco depois de terminar os estudos primários.
Entre as típicas redações escolares ("Nossa Cidade", "A Pátria",
"Tema Livre" etc.) que o jovem tinha composto, sempre muito cioso da nota que poderia receber,
havia uma sobre um assunto indefectível: "Natais? Oh! Esta será
a pior das redações; sobre algo tão
feliz só se pode escrever mal". E
terminava assim: "Não está mesmo mal escrito? Pelo menos eu
avisei e a reprimenda não poderá
me pegar de surpresa".
Uma cantora, a quem Walser
tinha enviado um exemplar em
sinal de admiração, lhe devolveu
o livro, aconselhando-o a aprender o alemão antes de se arriscar
a escrever novas histórias.
Muitos tratavam seus livros como se fossem as tarefas de um
aluno pouco aplicado, apontando
erros e o aconselhando a escrever
à maneira de Gottfried Keller ou
Hermann Hesse, paradigmas literários do seu tempo. Thomas
Mann o julgava no máximo um
"garoto inteligente". Não era à
toa que o aluno Fritz Kocher, alter ego de Walser, tivesse tanta
preocupação com as más notas.
Em 1914, Robert Musil reprovava em Kafka a semelhança com o
autor suíço: "O estilo peculiar de
Walser deve ser apenas dele e não
se presta a inspirar um gênero literário, por isso me inquieta o primeiro livro de Kafka, "Contemplação'". Ao que parece, o autor
de "A Metamorfose" estava consciente da influência e não escondia a sua admiração pelo precursor.
A genialidade de Walser, ignorada pela quase totalidade da crítica da época, que não entendia o
isolamento e a singularidade do
escritor, acabou reconhecida por
Walter Benjamin, que viu nos
textos do suíço a modernidade
tratada como um conto de fadas
desencantado.
Walser escreveu poucos livros,
entre eles, o extraordinário "O
Diário de Jakob von Gunten"
(1909), em que se serviu da sua
breve experiência de aluno numa
escola de formação de empregados domésticos em Berlim para
criar a atmosfera de um internato
de meninos. O início do romance
dá bem a idéia do estilo que Musil
reconheceu em Kafka: "Aqui
aprendemos muito pouco, faltam
professores e nós, alunos do Instituto Benjamenta, não chegaremos a nada, quero dizer, no futuro seremos todos gente muito humilde e subalterna".
"Às vezes, os escritores abandonam a escrita simplesmente por
terem caído num estado de loucura de que não se recuperam nunca mais. (...) Alguém disse que
Walser era como um corredor de
longa distância que, prestes a ultrapassar a linha de chegada, se
detinha surpreendido, olhava para mestres e condiscípulos e abandonava a corrida", escreveu o espanhol Enrique Vila-Matas, em
"Bartleby e Companhia" (ed.
Anagrama, 2000).
Os textos de Walser são como a
sua doença mental, que ele mesmo achava "difícil de definir e, ao
que parece, incurável". Uma loucura discreta vai se disseminando
pelas frases, criando aos poucos
um mundo levemente absurdo e
divertido, um humor insensato,
delicado e frágil. São grãos de loucura semeados ao longo de textos
aparentemente muito simples e
racionais, a juventude eterna e
incongruente de um senhor que
insiste em ver o mundo pelos
olhos de um "garoto inteligente".
Em 1929, depois de algumas
tentativas de suicídio, Robert
Walser foi levado ao hospício de
Waldau pela irmã que o adorava.
Ouvia vozes. Passou a escrever
textos curtos, com uma letra minúscula, indecifrável. Em 1933, foi
transferido a contragosto para o
hospício de Herisau e parou de escrever. Ficou internado até morrer, em 1956.
Em 1936, o editor e filantropo
Carl Seelig, grande admirador da
obra de Walser, foi autorizado a
visitá-lo regularmente e a acompanhá-lo em passeios pelo campo
e pelas montanhas. De início,
Walser ainda parecia desconfiado. Queria ficar isolado do mundo, livre dos julgamentos e das
opiniões dos outros. Queria ser esquecido, "um zero à esquerda".
Seelig o conquistou pelo silêncio. Dois anos depois do primeiro
encontro, no dia em que o escritor
completava 60 anos, o editor não
mencionou a data ao vê-lo pela
manhã. Ao se despedirem, no final do dia, na estação de trem,
Seelig finalmente lhe desejou feliz
aniversário. Walser lhe apertou a
mão por um longo tempo e depois
correu ao lado do trem, acenando, até a curva dos trilhos separá-los.
Durante 20 anos, os dois se encontraram para longas caminhadas pelas paisagens suíças. Esses
encontros, em que conversavam
sobre a literatura, a amizade, a
natureza etc., estão registrados no
belo "Passeios com Robert Walser", de Carl Seelig.
No Natal de 1956, ao contrário
dos anos anteriores, Walser saiu
para caminhar sozinho. Seelig tinha desmarcado o passeio natalino que costumavam fazer juntos.
Seu cachorro estava à morte e ele
não queria abandoná-lo. À noite,
recebeu a notícia de que encontraram Robert Walser morto, deitado na neve, exatamente como
um dos personagens do romance
"Os Irmãos Tanner", que ele tinha escrito fazia 50 anos.
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