São Paulo, terça-feira, 24 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BERNARDO CARVALHO

O Natal de Robert Walser

Há quase cem anos, o suíço Robert Walser (1878-1956) iniciava a sua carreira literária com "As Redações de Fritz Kocher" (1904). O livro era composto por vários textos curtos que, segundo o prefácio do autor, lhe foram gentilmente cedidos pela mãe zelosa de um garoto morto pouco depois de terminar os estudos primários.
Entre as típicas redações escolares ("Nossa Cidade", "A Pátria", "Tema Livre" etc.) que o jovem tinha composto, sempre muito cioso da nota que poderia receber, havia uma sobre um assunto indefectível: "Natais? Oh! Esta será a pior das redações; sobre algo tão feliz só se pode escrever mal". E terminava assim: "Não está mesmo mal escrito? Pelo menos eu avisei e a reprimenda não poderá me pegar de surpresa".
Uma cantora, a quem Walser tinha enviado um exemplar em sinal de admiração, lhe devolveu o livro, aconselhando-o a aprender o alemão antes de se arriscar a escrever novas histórias.
Muitos tratavam seus livros como se fossem as tarefas de um aluno pouco aplicado, apontando erros e o aconselhando a escrever à maneira de Gottfried Keller ou Hermann Hesse, paradigmas literários do seu tempo. Thomas Mann o julgava no máximo um "garoto inteligente". Não era à toa que o aluno Fritz Kocher, alter ego de Walser, tivesse tanta preocupação com as más notas.
Em 1914, Robert Musil reprovava em Kafka a semelhança com o autor suíço: "O estilo peculiar de Walser deve ser apenas dele e não se presta a inspirar um gênero literário, por isso me inquieta o primeiro livro de Kafka, "Contemplação'". Ao que parece, o autor de "A Metamorfose" estava consciente da influência e não escondia a sua admiração pelo precursor.
A genialidade de Walser, ignorada pela quase totalidade da crítica da época, que não entendia o isolamento e a singularidade do escritor, acabou reconhecida por Walter Benjamin, que viu nos textos do suíço a modernidade tratada como um conto de fadas desencantado.
Walser escreveu poucos livros, entre eles, o extraordinário "O Diário de Jakob von Gunten" (1909), em que se serviu da sua breve experiência de aluno numa escola de formação de empregados domésticos em Berlim para criar a atmosfera de um internato de meninos. O início do romance dá bem a idéia do estilo que Musil reconheceu em Kafka: "Aqui aprendemos muito pouco, faltam professores e nós, alunos do Instituto Benjamenta, não chegaremos a nada, quero dizer, no futuro seremos todos gente muito humilde e subalterna".
"Às vezes, os escritores abandonam a escrita simplesmente por terem caído num estado de loucura de que não se recuperam nunca mais. (...) Alguém disse que Walser era como um corredor de longa distância que, prestes a ultrapassar a linha de chegada, se detinha surpreendido, olhava para mestres e condiscípulos e abandonava a corrida", escreveu o espanhol Enrique Vila-Matas, em "Bartleby e Companhia" (ed. Anagrama, 2000).
Os textos de Walser são como a sua doença mental, que ele mesmo achava "difícil de definir e, ao que parece, incurável". Uma loucura discreta vai se disseminando pelas frases, criando aos poucos um mundo levemente absurdo e divertido, um humor insensato, delicado e frágil. São grãos de loucura semeados ao longo de textos aparentemente muito simples e racionais, a juventude eterna e incongruente de um senhor que insiste em ver o mundo pelos olhos de um "garoto inteligente".
Em 1929, depois de algumas tentativas de suicídio, Robert Walser foi levado ao hospício de Waldau pela irmã que o adorava. Ouvia vozes. Passou a escrever textos curtos, com uma letra minúscula, indecifrável. Em 1933, foi transferido a contragosto para o hospício de Herisau e parou de escrever. Ficou internado até morrer, em 1956.
Em 1936, o editor e filantropo Carl Seelig, grande admirador da obra de Walser, foi autorizado a visitá-lo regularmente e a acompanhá-lo em passeios pelo campo e pelas montanhas. De início, Walser ainda parecia desconfiado. Queria ficar isolado do mundo, livre dos julgamentos e das opiniões dos outros. Queria ser esquecido, "um zero à esquerda".
Seelig o conquistou pelo silêncio. Dois anos depois do primeiro encontro, no dia em que o escritor completava 60 anos, o editor não mencionou a data ao vê-lo pela manhã. Ao se despedirem, no final do dia, na estação de trem, Seelig finalmente lhe desejou feliz aniversário. Walser lhe apertou a mão por um longo tempo e depois correu ao lado do trem, acenando, até a curva dos trilhos separá-los.
Durante 20 anos, os dois se encontraram para longas caminhadas pelas paisagens suíças. Esses encontros, em que conversavam sobre a literatura, a amizade, a natureza etc., estão registrados no belo "Passeios com Robert Walser", de Carl Seelig.
No Natal de 1956, ao contrário dos anos anteriores, Walser saiu para caminhar sozinho. Seelig tinha desmarcado o passeio natalino que costumavam fazer juntos. Seu cachorro estava à morte e ele não queria abandoná-lo. À noite, recebeu a notícia de que encontraram Robert Walser morto, deitado na neve, exatamente como um dos personagens do romance "Os Irmãos Tanner", que ele tinha escrito fazia 50 anos.


Texto Anterior: Natal: Record e TV paga investem em especiais
Próximo Texto: Música: Joe Strummer, vocalista do Clash, morre aos 50 anos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.