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Livros concorrem com revistas e gibis
Em tempos de mortandade de peixes no rio São Francisco, biblioteca criada por pescador vira ponto de encontro em Pirapora
Centro de Léo do Peixe tem um pouco de tudo, de Jane Austen a Paulo Coelho; "Grande Sertão: Veredas", de Rosa, é pouco requisitado
DO ENVIADO ESPECIAL A PIRAPORA
Halexya Rodrigues Bavosa
Pedais, 7, defende com altivez
de rainha o título de primeira
leitora da biblioteca ambulante
que o pescador Leonardo da
Piedade Diniz Filho, mais conhecido como Léo do Peixe,
mantém desde fevereiro na feira livre de domingo, em Pirapora, no sertão mineiro, às margens do rio São Francisco.
"Com "h" e "y'", corrige Halexya, de botinha de plástico e minissaia. "Comecei lendo revistinha. Depois, passei para literatura mesmo: "A Odisséia" e
"Pluft, o Fantasminha'", diz.
Em março, a professora Denise de Souza, há 20 anos ensinando na rede pública da cidade de 55 mil habitantes, cuja
primeira livraria foi inaugurada há três meses, viu a faixa do
Clube da Leitura ao lado da barraca de peixe, na feira. Doou alguns livros.
Um mês depois, procurou
Léo do Peixe e o encorajou a se
inscrever no prêmio Viva Leitura, promovido no Brasil pela
Fundação Santillana, maior
grupo editorial espanhol, ao
qual pertencem as editoras Objetiva e Moderna. Dos 3.000
projetos inscritos, a barraca do
Clube da Leitura ficou entre os
cinco finalistas na categoria
pessoa física (o vencedor foi um
projeto de leitura para presidiárias em Porto Alegre).
Casado, pai de um menino de
sete anos e de uma menina de
quatro, pescador há 17 anos e
profissional há cinco, Léo do
Peixe, 40, inaugurou o Clube da
Leitura com cem livros, motivado, em parte, pela perspectiva de ficar perto dos filhos, que
poderiam se entreter enquanto
o pai estivesse vendendo peixes
na feira, aos domingos, depois
de passar a semana pescando,
fora de casa. Foi para o rádio
pedir doações.
Sem hierarquias
Hoje, com 348 leitores cadastrados -e um público de até 80
a cada domingo-, avalia ter
cerca de 8.000 volumes, entre
livros, revistas, enciclopédias,
dicionários, fascículos, panfletos religiosos e apostilas, todos
recebidos por doação e mantidos sem hierarquias catalográficas: "A Montanha Mágica" ao
lado de "Alegria de Viver para
Tornar sua Vida Mais Saudável
com Muito Charme".
Cada um escolhe o que quiser. Um menino de 11 anos,
Marcílio Pardinho, pode sair da
feira satisfeito, com "O Jardim
dos Finzi-Contini", de Giorgio
Bassani, debaixo do braço
("Meu primo já tinha lido. Disse que era interessante. Eu só
estava esperando o livro voltar"), mas a maioria prefere ler
revistas velhas e gibis. "Minha
mulher adora Paulo Coelho",
diz Léo do Peixe.
Há uma semana, Gildete
Araújo dos Santos retirou sete
livros, entre eles: "Enigma de
um Amor", "Revelando o
Amor", "Atração Irresistível" e
"Disfarce Irresistível". "O que a
mulherada mais gosta é "Sabrina" e "Júlia'", diz o pescador, fazendo alusão às séries de romances de banca de jornais.
"Vou para a roça. Na roça não
tem televisão", justifica Gildete, ecoando a máxima de Guimarães Rosa: "No sertão, o que
pode fazer uma pessoa do seu
tempo livre a não ser contar
histórias?" Ou ler.
Embora estejam em pleno
sertão, ou talvez por isso mesmo, poucos lêem o autor de
"Grande Sertão: Veredas", romance publicado há 50 anos.
"Tenho dificuldade. Acho que
tem sempre alguma coisa muito grande por trás. E eu fico
querendo saber o que é", diz
Léo do Peixe, ao mesmo tempo
em que se entusiasma com o livro de estréia de Lúcio Cardoso, "Maleita", de 1934, que ele
acabou de ler e cuja história se
passa em Pirapora: "Há cem
anos, os caras pescavam pelados nessa cachoeira. Isso aqui
era uma promiscuidade danada". Hoje, no final da tarde de
domingo, os crentes vão e vêm
de bicicleta, com a Bíblia na
mão, pela antiga ponte de madeira e ferro, desativada há
anos, que liga Pirapora a Buritizeiro sobre as corredeiras caudalosas do São Francisco.
O sertão e o rio
O sertão já não é o mesmo.
Na estrada que vai de Belo Horizonte a Pirapora, entre Cordisburgo e Curvelo, homens,
mulheres e crianças com pás
nas mãos gritam por uma
"moedinha" pelo serviço de encher de terra as crateras no asfalto, das quais os motoristas de
caminhões abarrotados de sacos de carvão tentam desviar
como podem.
O São Francisco também já
não é o mesmo. No ano passado, a Feam (Fundação Estadual
do Meio Ambiente) detectou a
presença de metais pesados no
leito do rio como causa da mortandade de peixes entre Três
Marias e Pirapora (leia texto na
página ao lado).
As veredas (olhos-d'água ou
nascentes) também correm o
risco de sumir, graças ao assoreamento.
O Clube da Leitura não tem
patrocínio nem incentivo além
da eventual colaboração de
amigos e simpatizantes. Sobrevive da obstinação do seu idealizador. Recentemente, um vereador cedeu um trailer para
abrigar a biblioteca na feira.
Embora reconhecido e saudado
por onde passa, Léo do Peixe
garante que não tem pretensões políticas: "Já me ofereceram legenda três vezes. Tenho
medo de ficar sem-vergonha".
Sua paixão são os livros e os
peixes. "Você acha que são só as
Sheilas?", pergunta, agarrado a
um surubim de 21 kg, sem cabeça (o maior que já pescou pesava 66 kg, com mais de 1,80 m).
O peixe de couro, aspecto
pré-histórico e carne suculenta, vive no fundo dos rios e é um
dos ícones da cidade. A antiga
zona de meretrício, um casario
velho e abandonado diante do
São Francisco, era conhecida
como Cabeça de Surubim: "Na
minha infância, vinha prostituta do Brasil inteiro", diz o pescador.
Meses difíceis
Durante a piracema (desova
dos peixes, entre novembro e
fevereiro), a pesca é proibida.
Muitos pescadores passam dificuldades, apesar do salário-defeso (equivalente a um salário mínimo) garantido por quatro meses por ano pelo Estado,
e continuam a pescar, contra a
lei, com suas tarrafas. São meses difíceis para Léo do Peixe.
"Hoje, tem mais pescador do
que peixe", diz. Obrigado a limitar as vendas ao estoque de
congelados, ele tenta aproveitar a piracema para se dedicar
aos livros.
Os leitores agradecidos parecem confirmar o lema do militante da leitura: "Não existe
cultura inútil". Entre os 45 cadastrados na feira do último
domingo, Jaquelane Reis
Aguiar, 22, voltou para devolver a "Pedagogia do Oprimido",
de Paulo Freire, e levar um novo livro. Escolheu "Orgulho e
Preconceito", de Jane Austen:
"Não conheço essa escritora,
mas é um tema atual, né? Quem
sabe não pode servir para alguma coisa?".
(BERNARDO CARVALHO)
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