São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 2006

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Livros concorrem com revistas e gibis

Em tempos de mortandade de peixes no rio São Francisco, biblioteca criada por pescador vira ponto de encontro em Pirapora

Centro de Léo do Peixe tem um pouco de tudo, de Jane Austen a Paulo Coelho; "Grande Sertão: Veredas", de Rosa, é pouco requisitado

DO ENVIADO ESPECIAL A PIRAPORA

Halexya Rodrigues Bavosa Pedais, 7, defende com altivez de rainha o título de primeira leitora da biblioteca ambulante que o pescador Leonardo da Piedade Diniz Filho, mais conhecido como Léo do Peixe, mantém desde fevereiro na feira livre de domingo, em Pirapora, no sertão mineiro, às margens do rio São Francisco.
"Com "h" e "y'", corrige Halexya, de botinha de plástico e minissaia. "Comecei lendo revistinha. Depois, passei para literatura mesmo: "A Odisséia" e "Pluft, o Fantasminha'", diz.
Em março, a professora Denise de Souza, há 20 anos ensinando na rede pública da cidade de 55 mil habitantes, cuja primeira livraria foi inaugurada há três meses, viu a faixa do Clube da Leitura ao lado da barraca de peixe, na feira. Doou alguns livros.
Um mês depois, procurou Léo do Peixe e o encorajou a se inscrever no prêmio Viva Leitura, promovido no Brasil pela Fundação Santillana, maior grupo editorial espanhol, ao qual pertencem as editoras Objetiva e Moderna. Dos 3.000 projetos inscritos, a barraca do Clube da Leitura ficou entre os cinco finalistas na categoria pessoa física (o vencedor foi um projeto de leitura para presidiárias em Porto Alegre).
Casado, pai de um menino de sete anos e de uma menina de quatro, pescador há 17 anos e profissional há cinco, Léo do Peixe, 40, inaugurou o Clube da Leitura com cem livros, motivado, em parte, pela perspectiva de ficar perto dos filhos, que poderiam se entreter enquanto o pai estivesse vendendo peixes na feira, aos domingos, depois de passar a semana pescando, fora de casa. Foi para o rádio pedir doações.

Sem hierarquias
Hoje, com 348 leitores cadastrados -e um público de até 80 a cada domingo-, avalia ter cerca de 8.000 volumes, entre livros, revistas, enciclopédias, dicionários, fascículos, panfletos religiosos e apostilas, todos recebidos por doação e mantidos sem hierarquias catalográficas: "A Montanha Mágica" ao lado de "Alegria de Viver para Tornar sua Vida Mais Saudável com Muito Charme".
Cada um escolhe o que quiser. Um menino de 11 anos, Marcílio Pardinho, pode sair da feira satisfeito, com "O Jardim dos Finzi-Contini", de Giorgio Bassani, debaixo do braço ("Meu primo já tinha lido. Disse que era interessante. Eu só estava esperando o livro voltar"), mas a maioria prefere ler revistas velhas e gibis. "Minha mulher adora Paulo Coelho", diz Léo do Peixe.
Há uma semana, Gildete Araújo dos Santos retirou sete livros, entre eles: "Enigma de um Amor", "Revelando o Amor", "Atração Irresistível" e "Disfarce Irresistível". "O que a mulherada mais gosta é "Sabrina" e "Júlia'", diz o pescador, fazendo alusão às séries de romances de banca de jornais. "Vou para a roça. Na roça não tem televisão", justifica Gildete, ecoando a máxima de Guimarães Rosa: "No sertão, o que pode fazer uma pessoa do seu tempo livre a não ser contar histórias?" Ou ler.
Embora estejam em pleno sertão, ou talvez por isso mesmo, poucos lêem o autor de "Grande Sertão: Veredas", romance publicado há 50 anos. "Tenho dificuldade. Acho que tem sempre alguma coisa muito grande por trás. E eu fico querendo saber o que é", diz Léo do Peixe, ao mesmo tempo em que se entusiasma com o livro de estréia de Lúcio Cardoso, "Maleita", de 1934, que ele acabou de ler e cuja história se passa em Pirapora: "Há cem anos, os caras pescavam pelados nessa cachoeira. Isso aqui era uma promiscuidade danada". Hoje, no final da tarde de domingo, os crentes vão e vêm de bicicleta, com a Bíblia na mão, pela antiga ponte de madeira e ferro, desativada há anos, que liga Pirapora a Buritizeiro sobre as corredeiras caudalosas do São Francisco.

O sertão e o rio
O sertão já não é o mesmo. Na estrada que vai de Belo Horizonte a Pirapora, entre Cordisburgo e Curvelo, homens, mulheres e crianças com pás nas mãos gritam por uma "moedinha" pelo serviço de encher de terra as crateras no asfalto, das quais os motoristas de caminhões abarrotados de sacos de carvão tentam desviar como podem.
O São Francisco também já não é o mesmo. No ano passado, a Feam (Fundação Estadual do Meio Ambiente) detectou a presença de metais pesados no leito do rio como causa da mortandade de peixes entre Três Marias e Pirapora (leia texto na página ao lado).
As veredas (olhos-d'água ou nascentes) também correm o risco de sumir, graças ao assoreamento.
O Clube da Leitura não tem patrocínio nem incentivo além da eventual colaboração de amigos e simpatizantes. Sobrevive da obstinação do seu idealizador. Recentemente, um vereador cedeu um trailer para abrigar a biblioteca na feira. Embora reconhecido e saudado por onde passa, Léo do Peixe garante que não tem pretensões políticas: "Já me ofereceram legenda três vezes. Tenho medo de ficar sem-vergonha". Sua paixão são os livros e os peixes. "Você acha que são só as Sheilas?", pergunta, agarrado a um surubim de 21 kg, sem cabeça (o maior que já pescou pesava 66 kg, com mais de 1,80 m).
O peixe de couro, aspecto pré-histórico e carne suculenta, vive no fundo dos rios e é um dos ícones da cidade. A antiga zona de meretrício, um casario velho e abandonado diante do São Francisco, era conhecida como Cabeça de Surubim: "Na minha infância, vinha prostituta do Brasil inteiro", diz o pescador.

Meses difíceis
Durante a piracema (desova dos peixes, entre novembro e fevereiro), a pesca é proibida. Muitos pescadores passam dificuldades, apesar do salário-defeso (equivalente a um salário mínimo) garantido por quatro meses por ano pelo Estado, e continuam a pescar, contra a lei, com suas tarrafas. São meses difíceis para Léo do Peixe. "Hoje, tem mais pescador do que peixe", diz. Obrigado a limitar as vendas ao estoque de congelados, ele tenta aproveitar a piracema para se dedicar aos livros.
Os leitores agradecidos parecem confirmar o lema do militante da leitura: "Não existe cultura inútil". Entre os 45 cadastrados na feira do último domingo, Jaquelane Reis Aguiar, 22, voltou para devolver a "Pedagogia do Oprimido", de Paulo Freire, e levar um novo livro. Escolheu "Orgulho e Preconceito", de Jane Austen: "Não conheço essa escritora, mas é um tema atual, né? Quem sabe não pode servir para alguma coisa?". (BERNARDO CARVALHO)


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