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FERREIRA GULLAR
Natal em cana
Para encher o tempo, que não passava, sugeri que cada um contasse episódios interessantes
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O GOLPE militar, que pôs abaixo o governo constitucional
de João Goulart, em 1964, tomou muita gente de surpresa, inclusive a mim, que acreditava ter o presidente o controle das Forças Armadas. No entendimento de boa parte da esquerda, os militares golpistas
eram uma minoria. Ao que tudo indica, não eram e, assim, da noite para o dia, vimos instalar-se no país
um regime autoritário que, pouco a
pouco, foi estreitando a margem de
liberdade dos cidadãos.
Era natural que as diferentes tendências da esquerda brasileira, após
o susto inicial e a perda de posições
legais, se reorganizassem na clandestinidade e procurassem paulatinamente articular a resistência contra o avanço do autoritarismo. Mas a
luta não se limitou à resistência
clandestina, já que, em diferentes
níveis, estudantes e intelectuais se
dispuseram a lutar abertamente pelas liberdades democráticas, que o
regime militar limitara.
Como tantos outros escritores e
artistas, tomei parte nessa luta, especialmente como um dos fundadores do Grupo Opinião, cujo teatro, à
rua Siqueira Campos, tornou-se
uma espécie de centro de resistência
ao regime autoritário. Ali, realizávamos reuniões semiclandestinas para fazer face às arbitrariedades da
censura e dos agentes da ditadura.
Outro centro de resistência era a
editora do Ênio Silveira, que reunia
um grupo de intelectuais de alto nível. Eles fundaram a revista "Civilização Brasileira", que desempenhou
papel importante na formação de
uma consciência antiditadura e na
ampliação da luta contra o cerceamento do direito de expressão.
Ao regime militar não interessava
assumir abertamente seu caráter ditatorial. Por isso, mantivera aberto o
Congresso Nacional e a realização
de eleições diretas para parlamentares, prefeitos e governadores, mas
não para presidente da República,
que era imposto à aprovação do
Congresso pelo comando militar do
regime. Os jornais circulavam, mas
os censores se instalaram dentro das
Redações; os teatros funcionavam,
mas os espetáculos eram mutilados
e, às vezes, proibidos.
Enquanto isso, a casa dos militantes anti-regime era invadida e os líderes da resistência presos sem ordem judicial. Foi numa dessas que
levaram de minha casa os originais
de um livro sobre arte contemporânea, intitulado "Do Cubismo à Arte
Neoconcreta", na suposição de que
se referia a Cuba. Esse fato tornou-se uma piada que correu o mundo
inteiro.
Em 13 de dezembro de 1968, com a
decretação do Ato Institucional nš 5,
centenas de opositores do regime
foram presos, eu entre eles. Fui levado para um xadrez na Vila Militar,
onde encontrei outros detidos, inclusive um pobre homem que, por
azar, chamava-se Antônio Callado.
Ele passava os dias preocupado com
seu cachorro de estimação que, segundo afirmava, sofria dos mesmos
males que o dono, e, por isso, tomava
os mesmos remédios; temia que sua
mulher, teimosa, não estivesse dando os medicamentos ao animal. Outro preso, um nordestino que nada
sabia de política, dera o azar de alugar uma casa que servira de "aparelho" a um grupo da esquerda radical.
Os outros eram mesmo militantes,
sendo o mais velho, seu Euclides,
partidário da luta armada e trotskista até a medula. Certa manhã, veio
juntar-se a nós Paulo Francis, pego
ao voltar de Nova York, ou seja, do
Waldorf Astoria diretamente para
nosso xadrez em Realengo.
Para encher o tempo, que não passava, sugeri que cada um de nós contasse episódios interessantes de sua
vida ou que haviam dado motivo à
prisão. Jorge, que era agrimensor,
contou que havia sido preso como
guerrilheiro porque encontraram
em sua casa uma barraca de lona e
uma espingarda do papo-amarelo,
que nem atirava mais. Engraçado foi
seu caso com uma macaca, que gamou por ele e passou a segui-lo por
toda parte, na mata.
Trouxeram para nossa cela um diplomata que, nos primeiros dias,
manteve-se com paletó e gravata,
mas terminou ficando apenas de
cueca, quando o calor aumentou.
Francis fez o mesmo. De minha parte, evitava preocupar-me com o desfecho daquela situação, apesar dos
boatos de um soldado sacana que
tentava nos assustar, dizendo que
iam fuzilar os prisioneiros políticos.
Passei aquele Natal em cana. Na
casa de dona Julieta, matriarca da
família com quase cem anos, o pessoal não sabia como explicar-lhe a
minha ausência. Quando alguém
perguntou por mim e ela levantou a
cabeça, atenta, Teresa explicou-lhe,
com muito jeito, que eu estava preso
na Vila Militar.
-E eu com isso? resmungou ela,
servindo-se de rabanada.
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