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Crítica/Música/"O Cravo Bem Temperado"
Zhu Xiao-Mei traz versão pessoal de Bach em álbum duplo
Em livro, pianista chinesa relembra período que foi enviada a campo de trabalho agrícola, quando foi afastada da música
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Na longa entrevista do
encarte, Zhu Xiao-Mei
fala de sustentar cada
frase, nos prelúdios e fugas de
"O Cravo Bem Temperado", como "a chama de uma vela numa
noite ventosa". Também fala da
dificuldade de evitar os maneirismos, por um lado, e a austeridade, por outro; e de uma potência da música ligada ao senso de continuidade, que não é
outra coisa, afinal, senão "a
continuidade da vida".
Essas e outras imagens servem para sugerir "aquilo que é
tão difícil expressar com palavras", e que a audição desses
discos torna imediatamente
sensível e compreensível: uma
visão pessoalíssima da música
de Bach (1685-1750), não só como invenção das formas, mas
também como testemunho, ou
salvaguarda. Tocados como ela
toca, esses 24 prelúdios e fugas
são verdadeiros instrumentos
de salvação -salvação de todos
nós, agora, como já o foram,
num sentido bem literal, para a
própria pianista.
Nascida em Xangai, em 1949,
a menina-prodígio Xiao-Mei
estudava Bach desde pequena
com o professor Pan Yiming,
no Conservatório de Beijing.
Deve a ele a noção de que a música exige, além de controle técnico, formação cultural ampla e
domínio do espírito e do corpo.
Com a Revolução Cultural de
Mao, em 1964, esse início de vida seria bruscamente interrompido. A adolescente foi enviada para um campo de trabalhos agrícolas, o que aliás aceitou sem revolta, convencida
dos ideais maoístas. Denunciou
o próprio pai e assistiu à cerimônia de humilhação pública
de seu antigo professor.
"Posso perdoar tudo -menos Mao", diz ela hoje. Essas e
outras memórias estão no seu
livro recém-lançado, "La Rivière et Son Secret" (o rio e seu segredo, ed. Robert Laffont).
Depois de cinco anos sem
música, lentamente foi voltando ao piano. Conseguiu uma
partitura do vol. 2 do "Cravo",
que copiou inteira à mão. Estudava num quarto com temperatura próxima de zero, depois de
convencer aos guardas de que
se tratavam de arranjos de música folclórica chinesa.
Foram muitos anos assim,
até 1980, quando Xiao-Mei
emigrou para os EUA. Trabalhou como garçonete antes de
conseguir vaga no Conservatório de Boston; depois na Universidade de Marlboro, com
Rudolf Serkin. Mas não se
adaptou. Há 20 anos mora em
Paris, onde é professora no
Conservatório Superior de Música. "Sou pessimista", declarou
numa entrevista ao "Figaro"
(13/12/07). "Vejo o mundo sem
cores, sombrio. Luz, para mim,
quer dizer serenidade; e é na
música, às vezes, que consigo
encontrá-la." A frase dá outro
sentido às delicadezas dessa
gravação, que alterna o mais
preciso rendilhado do contraponto com vagas líquidas da
melodia. Pressão e leveza, movimento e estase, camadas e camadas de música sobrepostas
num outro tempo, que deixa
entender tudo, como se fosse
uma versão viva do espaço.
Tudo aqui parece num limite
do possível, sem exibir o menor
exagero. Tudo respira, na fronteira de algo profundo ou preciso demais para qualquer outra
forma de expressão. O que esse
algo pode ser ela mesma sugere, quando diz, com concisão de
epigrama, que não busca outra
coisa senão "a melhor qualidade possível de silêncio".
J.S. BACH: O CRAVO BEM TEMPERADO, vol. 2
Artista: Zhu Xiao-Mei
Lançamento: Mirare
Quanto: importado (CD duplo),
21,47 (R$ 55), em www.amazon.fr
Avaliação: ótimo
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