|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVRO/LANÇAMENTOS
MACHADO DE ASSIS
Professor de literatura condensa sua compreensão a respeito do romancista na série "Folha Explica"
Alfredo Bosi encara desafio machadiano
FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Há alguns anos, Alfredo Bosi,
66, impôs-se um desafio de vulto
mesmo para os que, como ele
(professor titular de literatura
brasileira na Universidade de São
Paulo), são grandes em sua área:
encarar Machado de Assis.
Não fosse só aquele que é considerado o maior romancista brasileiro, Machado é, exatamente por
isso, um autor sobre o qual muito
já se disse.
No volume que resultou de sua
primeira investida, o próprio Bosi
perguntava: "Por que escrever
ainda sobre o significado da ficção machadiana?". O título, "O
Enigma do Olhar" (Ática, 2000), é
eloquente e sintetiza as razões da
obra: Machado continua sendo
fonte de "mistérios" literários.
Agora, Bosi renova o desafio, ao
condensar, nas pouco mais de
cem páginas do volume de número 53 da série "Folha Explica", sua
compreensão de Machado.
Leia abaixo trechos da entrevista que concedida por e-mail.
Folha - Machado de Assis é estudado como autor realista. No entanto é diferente de grandes narradores realistas de outras literaturas. Em "O Enigma do Olhar", na
"História Concisa da Literatura
Brasileira" e neste novo livro, o sr.
dá a pista do porquê, ao falar do
distanciamento que ele consegue
ter do contexto social em que situa
seus romances, construindo uma
obra universal e atemporal. Diante
dessa capacidade de extrapolar o
cenário, o sr. diria que ele redefiniu
o realismo?
Alfredo Bosi - Realismo é uma
categoria estética polimorfa. Para
defini-la, seria necessário saber o
que é a realidade, e o quanto as
nossas palavras a representam
fielmente. Problema antigo e espinhosíssimo. Em termos de história literária, a partir de meados do
século 19, atribuiu-se ao romance
a função de representar a sociedade mediante a fixação de tipos e
ambientes. O autor deveria eclipsar-se, pois esse realismo aspirava
à impessoalidade. O programa ficou na intenção.
Todos os grandes romancistas
da época projetaram suas paixões
e interpretações do homem e do
mundo: Zola, Eça e, entre nós,
Raul Pompéia e Machado de Assis, que nunca se sujeitou a escolas
literárias. O que conta para o leitor de hoje é a maneira peculiar
pela qual cada narrador configurou a sua própria experiência, que
é o encontro do real objetivo com
a realidade do sujeito.
Folha - Comentando "Memorial
de Aires" e "Esaú e Jacó", o sr. aborda o lado político de Machado. Especialmente no "Memorial", o sr.
atenta para o fato de que Aires passa rapidamente pelos acontecimentos importantes do período,
como a proclamação da República
e mesmo a abolição, que, apesar de
alegrá-lo, prefere não comemorar
(ambos os fatos deixam entrever
posições políticas do autor, monarquista e abolicionista). Mais adiante, o sr. menciona o fato de o Machado cronista preferir as pequenezas da vida política. Existe uma
aproximação possível entre o personagem de Aires e o autor?
Bosi - O contexto de "Esaú e Jacó" e de "Memorial de Aires" é o
Rio da década de 1880, quando se
deram a abolição do cativeiro e a
proclamação da República. Os fatos estão evocados em algumas
passagens de ambos os romances,
mas o seu conteúdo político-partidário e o seu potencial significado popular (no caso da Abolição)
aparecem relativizados pelo olhar
cético do Conselheiro Aires.
Observe-se que esse tom desenganado é o mesmo do Machado
maduro das crônicas sobre fatos
políticos, não só brasileiros como
estrangeiros. Machado é mais do
que um crítico dos homens públicos brasileiros: a sua sátira não conhece fronteiras.
Quanto à aproximação entre
Aires e Machado, acabou virando
consenso da crítica desde a publicação do Memorial. Arrisco-me a
supor que o Conselheiro teria sido uma espécie de ego ideal do romancista.
Folha - Ampliando a questão, pode-se comparar Machado a outros
de seus personagens, como o Bentinho de "Dom Casmurro"? Lúcia
Miguel Pereira, como o sr. mesmo
lembra no livro, já vira em personagens de seus primeiros romances
traços do Machado jovem. Como o
sr. vê a "intromissão" do autor no
caráter de seus personagens?
Bosi - A resposta anterior está
formulada em termos suficientemente hipotéticos para exprimir a
cautela com que julgo se deva
propor a identificação do autor
com esta ou aquela personagem
dos seus romances.
Em "Dom Casmurro", por
exemplo, a sondagem psicológica
pode descobrir traços do homem
Machado (a sua "personalidade
empírica", no dizer de Croce) tanto em Bentinho como em Capitu... Não creio que a interpretação
literária avance com segurança
por esse caminho. Mas nada impede que se tente percorrê-lo...
Folha - Por fim, como o sr., que
defende a idéia de que os bons
mestres devem ensinar os alunos
dos primeiros anos, vê a dificuldade que os professores do ensino
médio têm de mostrar aos alunos a
atualidade de autores como Machado de Assis?
Bosi - A pergunta remete ao ensino da literatura no ciclo colegial.
É um desafio propor a leitura de
Machado a alunos de 15 e 16 anos
de idade, imersos na cultura de
massa pós-moderna. A rigor, Machado exige leitores vividos e maduros, existencial e culturalmente. A tarefa do professor é ler com
o aluno e comentar passo a passo
as linhas e as entrelinhas do nosso
bruxo. E a nossa tarefa na universidade é formar esse professor ao
mesmo tempo apaixonado e
competente. Mas quem nos formará a nós mesmos? Os clássicos
antigos e modernos.
Leia textos de Alfredo Bosi publicados na
Folha em www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/bosi.htm
Texto Anterior: Exemplos da ficção engajada de Jack London chegam ao Brasil Próximo Texto: "Dicionário Houaiss" ganha versões de sinônimos e de verbos Índice
|