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São Paulo, sábado, 25 de janeiro de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTOS

MACHADO DE ASSIS

Professor de literatura condensa sua compreensão a respeito do romancista na série "Folha Explica"

Alfredo Bosi encara desafio machadiano

FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Há alguns anos, Alfredo Bosi, 66, impôs-se um desafio de vulto mesmo para os que, como ele (professor titular de literatura brasileira na Universidade de São Paulo), são grandes em sua área: encarar Machado de Assis.
Não fosse só aquele que é considerado o maior romancista brasileiro, Machado é, exatamente por isso, um autor sobre o qual muito já se disse.
No volume que resultou de sua primeira investida, o próprio Bosi perguntava: "Por que escrever ainda sobre o significado da ficção machadiana?". O título, "O Enigma do Olhar" (Ática, 2000), é eloquente e sintetiza as razões da obra: Machado continua sendo fonte de "mistérios" literários.
Agora, Bosi renova o desafio, ao condensar, nas pouco mais de cem páginas do volume de número 53 da série "Folha Explica", sua compreensão de Machado.
Leia abaixo trechos da entrevista que concedida por e-mail.

Folha - Machado de Assis é estudado como autor realista. No entanto é diferente de grandes narradores realistas de outras literaturas. Em "O Enigma do Olhar", na "História Concisa da Literatura Brasileira" e neste novo livro, o sr. dá a pista do porquê, ao falar do distanciamento que ele consegue ter do contexto social em que situa seus romances, construindo uma obra universal e atemporal. Diante dessa capacidade de extrapolar o cenário, o sr. diria que ele redefiniu o realismo?
Alfredo Bosi -
Realismo é uma categoria estética polimorfa. Para defini-la, seria necessário saber o que é a realidade, e o quanto as nossas palavras a representam fielmente. Problema antigo e espinhosíssimo. Em termos de história literária, a partir de meados do século 19, atribuiu-se ao romance a função de representar a sociedade mediante a fixação de tipos e ambientes. O autor deveria eclipsar-se, pois esse realismo aspirava à impessoalidade. O programa ficou na intenção.
Todos os grandes romancistas da época projetaram suas paixões e interpretações do homem e do mundo: Zola, Eça e, entre nós, Raul Pompéia e Machado de Assis, que nunca se sujeitou a escolas literárias. O que conta para o leitor de hoje é a maneira peculiar pela qual cada narrador configurou a sua própria experiência, que é o encontro do real objetivo com a realidade do sujeito.

Folha - Comentando "Memorial de Aires" e "Esaú e Jacó", o sr. aborda o lado político de Machado. Especialmente no "Memorial", o sr. atenta para o fato de que Aires passa rapidamente pelos acontecimentos importantes do período, como a proclamação da República e mesmo a abolição, que, apesar de alegrá-lo, prefere não comemorar (ambos os fatos deixam entrever posições políticas do autor, monarquista e abolicionista). Mais adiante, o sr. menciona o fato de o Machado cronista preferir as pequenezas da vida política. Existe uma aproximação possível entre o personagem de Aires e o autor?
Bosi -
O contexto de "Esaú e Jacó" e de "Memorial de Aires" é o Rio da década de 1880, quando se deram a abolição do cativeiro e a proclamação da República. Os fatos estão evocados em algumas passagens de ambos os romances, mas o seu conteúdo político-partidário e o seu potencial significado popular (no caso da Abolição) aparecem relativizados pelo olhar cético do Conselheiro Aires.
Observe-se que esse tom desenganado é o mesmo do Machado maduro das crônicas sobre fatos políticos, não só brasileiros como estrangeiros. Machado é mais do que um crítico dos homens públicos brasileiros: a sua sátira não conhece fronteiras.
Quanto à aproximação entre Aires e Machado, acabou virando consenso da crítica desde a publicação do Memorial. Arrisco-me a supor que o Conselheiro teria sido uma espécie de ego ideal do romancista.

Folha - Ampliando a questão, pode-se comparar Machado a outros de seus personagens, como o Bentinho de "Dom Casmurro"? Lúcia Miguel Pereira, como o sr. mesmo lembra no livro, já vira em personagens de seus primeiros romances traços do Machado jovem. Como o sr. vê a "intromissão" do autor no caráter de seus personagens?
Bosi -
A resposta anterior está formulada em termos suficientemente hipotéticos para exprimir a cautela com que julgo se deva propor a identificação do autor com esta ou aquela personagem dos seus romances.
Em "Dom Casmurro", por exemplo, a sondagem psicológica pode descobrir traços do homem Machado (a sua "personalidade empírica", no dizer de Croce) tanto em Bentinho como em Capitu... Não creio que a interpretação literária avance com segurança por esse caminho. Mas nada impede que se tente percorrê-lo...

Folha - Por fim, como o sr., que defende a idéia de que os bons mestres devem ensinar os alunos dos primeiros anos, vê a dificuldade que os professores do ensino médio têm de mostrar aos alunos a atualidade de autores como Machado de Assis?
Bosi -
A pergunta remete ao ensino da literatura no ciclo colegial. É um desafio propor a leitura de Machado a alunos de 15 e 16 anos de idade, imersos na cultura de massa pós-moderna. A rigor, Machado exige leitores vividos e maduros, existencial e culturalmente. A tarefa do professor é ler com o aluno e comentar passo a passo as linhas e as entrelinhas do nosso bruxo. E a nossa tarefa na universidade é formar esse professor ao mesmo tempo apaixonado e competente. Mas quem nos formará a nós mesmos? Os clássicos antigos e modernos.


Leia textos de Alfredo Bosi publicados na Folha em www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/bosi.htm

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