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CINEMA/CRÍTICA
Quatro fórmulas poéticas resumem a filosofia do "curinga"
CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN
Sem sentimentalismo, sem sensacionalismo, o documentário "Eu Sou Curinga! O
Enigma!", concebido e dirigido
por Carmen Opipari e por Sylvie
Timbert, alcança aquilo que a TV
nem tenta e que o cinema muito
poucas vezes consegue: captar de
São Paulo aquilo que a cidade
mais esconde -seus habitantes.
À primeira vista, trata-se do registro da participação de um grupo de pessoas com distúrbios psíquicos no espetáculo teatral "Gotham SP", uma montagem do
Grupo Ueinzz sob a direção de
Sergio Penna e Renato Cohen. O
resultado não é, como seria de esperar, uma denúncia da metrópole como máquina de fazer loucos.
Na contramão desse clichê, as
diretoras adotam quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia de seu trabalho:
1. "O inventor da cidade é menor que ela", recita a atriz o texto
do espetáculo teatral inspirado
nas "Cidades Invisíveis", de Italo
Calvino. A fala conclui a abertura
do documentário, constituída de
tomadas que mostram a cidade
como fluxos sem um princípio e
sem um fim, como percepções de
sua beleza e de sua feiúra. A cida
de visível como experiência: anônima, impessoal, ao mesmo tempo superpovoada e inabitada.
2. "Mas a vida das pessoas mal
cabe dentro de uma cidade",
completa a atriz na mesma fala.
Ela anuncia as experiências que
testemunharemos a seguir. E lembra que os dramas, tragédias e alegrias vividos na cidade ultrapassam as fronteiras urbanas. "Gotham SP" não é nem só Gotham
City, nem só São Paulo. Nenhuma
daquelas histórias é particularmente paulistana. Só resumem o
que existe de comum entre São
Paulo, Nova Déli e Nova York.
3. "Se você pretende/ saber
quem eu sou/ eu posso lhe dizer",
cantarola os versos prosaicos de
Roberto Carlos um ator que representa o "cantor mais amado
do Brasil". Essa terceira fórmula
resume o agenciamento mais ousado e que sustenta a amplitude
dessa obra. O recurso a entrevistas que materializa, desde longa
data, o gênero documentário ganha novo significado. Pois ao se
abolirem as perguntas e respostas
surgem enunciações liberadas do
jugo da interrogação "criminal"
da entrevista. Como diz a fórmula
acima: "...Eu posso lhe dizer".
Essas memórias de si diante da
câmera funcionam então como
intensidades, como esforços individuais de reserva diante dos consensos da massa. São magnificamente pessoais, puros afetos o
que se vê e se ouve. Como a inesquecível personagem que sofre
porque "tem uma sensibilidade
que foge ao seu controle".
4. Por fim, a quarta fórmula, extraída da mesma canção de Roberto: "Preciso de ajuda/ por favor me acuda/ eu me sinto muito
só", versos ouvidos em off na voz
de alguém presente nos ensaios.
Com eles atinge o alvo o belíssimo
projeto das duas documentaristas, na medida em que elas conseguem nos conduzir do mais abstrato (a metrópole) ao mais concreto (a experiência -incomunicável?- de quem vive nela).
Distribuição ampla
Depois do sucesso de "Janela da
Alma" e de "Edifício Master", algum distribuidor deveria mostrar
"Eu Sou Curinga! O Enigma!".
Pois, como o filme de Eduardo
Coutinho dá luz a cariocas que
não vivem sob o sol, Opipari e
Timbert revelam que nem só de
prédios é feita a cidade sem alma.
Avaliação:
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