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São Paulo, terça-feira, 25 de fevereiro de 2003

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CINEMA/CRÍTICA

Quatro fórmulas poéticas resumem a filosofia do "curinga"

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN

Sem sentimentalismo, sem sensacionalismo, o documentário "Eu Sou Curinga! O Enigma!", concebido e dirigido por Carmen Opipari e por Sylvie Timbert, alcança aquilo que a TV nem tenta e que o cinema muito poucas vezes consegue: captar de São Paulo aquilo que a cidade mais esconde -seus habitantes.
À primeira vista, trata-se do registro da participação de um grupo de pessoas com distúrbios psíquicos no espetáculo teatral "Gotham SP", uma montagem do Grupo Ueinzz sob a direção de Sergio Penna e Renato Cohen. O resultado não é, como seria de esperar, uma denúncia da metrópole como máquina de fazer loucos.
Na contramão desse clichê, as diretoras adotam quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia de seu trabalho:
1. "O inventor da cidade é menor que ela", recita a atriz o texto do espetáculo teatral inspirado nas "Cidades Invisíveis", de Italo Calvino. A fala conclui a abertura do documentário, constituída de tomadas que mostram a cidade como fluxos sem um princípio e sem um fim, como percepções de sua beleza e de sua feiúra. A cida de visível como experiência: anônima, impessoal, ao mesmo tempo superpovoada e inabitada.
2. "Mas a vida das pessoas mal cabe dentro de uma cidade", completa a atriz na mesma fala. Ela anuncia as experiências que testemunharemos a seguir. E lembra que os dramas, tragédias e alegrias vividos na cidade ultrapassam as fronteiras urbanas. "Gotham SP" não é nem só Gotham City, nem só São Paulo. Nenhuma daquelas histórias é particularmente paulistana. Só resumem o que existe de comum entre São Paulo, Nova Déli e Nova York.
3. "Se você pretende/ saber quem eu sou/ eu posso lhe dizer", cantarola os versos prosaicos de Roberto Carlos um ator que representa o "cantor mais amado do Brasil". Essa terceira fórmula resume o agenciamento mais ousado e que sustenta a amplitude dessa obra. O recurso a entrevistas que materializa, desde longa data, o gênero documentário ganha novo significado. Pois ao se abolirem as perguntas e respostas surgem enunciações liberadas do jugo da interrogação "criminal" da entrevista. Como diz a fórmula acima: "...Eu posso lhe dizer".
Essas memórias de si diante da câmera funcionam então como intensidades, como esforços individuais de reserva diante dos consensos da massa. São magnificamente pessoais, puros afetos o que se vê e se ouve. Como a inesquecível personagem que sofre porque "tem uma sensibilidade que foge ao seu controle".
4. Por fim, a quarta fórmula, extraída da mesma canção de Roberto: "Preciso de ajuda/ por favor me acuda/ eu me sinto muito só", versos ouvidos em off na voz de alguém presente nos ensaios. Com eles atinge o alvo o belíssimo projeto das duas documentaristas, na medida em que elas conseguem nos conduzir do mais abstrato (a metrópole) ao mais concreto (a experiência -incomunicável?- de quem vive nela).

Distribuição ampla
Depois do sucesso de "Janela da Alma" e de "Edifício Master", algum distribuidor deveria mostrar "Eu Sou Curinga! O Enigma!". Pois, como o filme de Eduardo Coutinho dá luz a cariocas que não vivem sob o sol, Opipari e Timbert revelam que nem só de prédios é feita a cidade sem alma.


Avaliação:     


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