São Paulo, sábado, 25 de fevereiro de 2006

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Manuscritos do país morto


O premiado escritor albanês Ismail Kadaré lança novelas em que faz críticas ao antigo regime comunista e fala à Folha com exclusividade; um dos originais saiu da Albânia às escondidas

Jeff J. Mitchell - 27.jun.2005/Reuters
O albanês Ismail Kadaré em Edimburgo (Escócia), em junho do ano passado, quando recebeu o Man Booker International Prize


MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL

Em 2005, ele bateu Philip Roth, Günter Grass, Kenzaburo Oe e John Updike, entre outros. A nata da literatura mundial concorria ao Man Booker International Prize, o prêmio lançado para rivalizar com o Nobel de Literatura (o Booker Prize já era o mais prestigioso da Comunidade Britânica), mas foi o soturno albanês Ismail Kadaré que ganhou a honraria.
Toda a carreira de Kadaré ecoa o conflituoso passado ancestral da Albânia, o país mais pobre da Europa, oprimido por uma ditadura comunista das mais retrógradas. Até que tudo ruiu com a queda do Muro de Berlim.
Foi nesse cenário que Kadaré escreveu três manuscritos contra a ditadura que serviriam de testamento político e intelectual caso morresse. Um deles é agora lançado no Brasil, juntamente de sua continuação recém-escrita: "A Filha de Agamenon" e "O Sucessor", respectivamente.
Com vários livros editados no país, o escritor também é conhecido aqui através de "Abril Despedaçado", seu livro adaptado para o cinema por Walter Salles. Kadaré vive em Paris desde 1990 e foi de lá que falou à Folha, por telefone, sobre a história dos manuscritos e sobre a ligação de sua literatura com a política.

Folha - Como o manuscrito de "A Filha de Agamenon" foi parar num cofre francês?
Ismail Kadaré -
Escrevi "A Filha de Agamenon" durante a ditadura comunista, na década de 80. Meu editor francês veio para a Albânia especialmente para pegar os manuscritos do livro e tirá-los do país. Fiquei muito contente quando eles já estavam em Paris, depositados no cofre de um banco. Tentei me preservar para a eventualidade de a polícia invadir minha casa. Eu não podia levá-los pessoalmente porque isso era proibido por lei.

Folha - O material publicado é fiel ao manuscrito ou foi modificado?
Kadaré -
É original. Mas outro livro meu que saiu nas mesmas condições, "A Sombra", sofreu modificações. Mudei os nomes e as situações como se fosse uma outra edição, de um livro alemão.

Folha - E por que retomar os personagens de "A Filha de Agamenon" em "O Sucessor", quase 20 anos depois?
Kadaré -
Escrevi para o meu prazer, imagino que por coerência... A idéia inicial era escrever "O Sucessor" naquela época, mas seu tema era ainda mais perigoso do que "A Filha...". Por isso não o escrevi na época.

Folha - Há mais manuscritos que foram guardados?
Kadaré -
Sim, uma novela que já foi publicada na França, "A Decolagem do Migrador". Fiz sair clandestinamente três manuscritos de livros e alguns poemas. Dei ao meu editor a chave do cofre no banco. Ele tinha autorização para abrir se acontecesse algo comigo.

Folha - O sr. temia pela sua vida?
Kadaré -
A precaução valia mesmo para a possibilidade de eu morrer de causas naturais. Nesse caso ele tinha a minha autorização para publicar os três manuscritos imediatamente. Segundo a minha orientação, era para dizer que esses textos mostravam minha verdadeira relação com o Estado albanês, para impedir que o regime comunista utilizasse falsamente meu nome. Por exemplo, dizer que eu era um grande escritor comunista, fiel ao partido etc. Isso era habitual. Meu editor deveria jogar uma ducha de água fria, desmentir essa versão e dizer que ele tinha uma outra verdade que seria revelada em dois ou três meses. Foi exatamente essa minha intenção.

Folha - Esses textos são uma espécie de testamento?
Kadaré -
Exatamente, eram um testamento.

Folha - O sr. queria fazer um "acerto de contas" com sua vida passada na Albânia?
Kadaré -
De certa forma, fiz isso com outros livros meus, mas nesse caso era uma coisa direta, sem rodeios. Falo da ditadura albanesa, cito o tirano, o ditador etc. Falo de forma inequívoca.

Folha - Os livros mostram personagens que têm suas vidas afetadas ou ditadas pelo governo.
Kadaré -
Nos regimes comunistas às vezes se passava essa situação trágica da Antigüidade, a luta do homem contra o destino. O poder queria tomar o lugar do destino. Lutar contra o poder era quase lutar contra o destino.

Folha - Vinte anos separam os dois livros. O que mudou no sr.?
Kadaré -
Eu não mudei meu ponto de vista. Talvez tenha mudado o estilo. Acho "O Sucessor" mais grave, mais monumental.

Folha - O sr. sempre utiliza metáforas, alegorias políticas, a mitologia... O sr. sofisticou esse estilo por causa do regime comunista?
Kadaré -
Não, é minha maneira de escrever. Escrevo hoje como escrevia antes. Minha escrita não estava condicionada apenas pela ditadura comunista.

Folha - O sr. ganhou o Man Booker International Prize e sempre é citado como candidato ao Prêmio Nobel. Como vê esses prêmios?
Kadaré -
Não penso muito no Nobel. Já faz 20 anos que estou na lista, já estou habituado. Fiquei muito contente com o Man International Booker Prize. Fiquei na companhia dos maiores escritores do mundo.


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