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Manuscritos do país morto
O premiado escritor albanês Ismail Kadaré lança novelas em que faz críticas ao antigo regime comunista e fala à Folha com exclusividade; um dos originais saiu da Albânia às escondidas
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Jeff J. Mitchell - 27.jun.2005/Reuters
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O albanês Ismail Kadaré em Edimburgo (Escócia), em junho do ano passado, quando recebeu o Man Booker International Prize |
MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL
Em 2005, ele bateu Philip Roth,
Günter Grass, Kenzaburo Oe e
John Updike, entre outros. A nata
da literatura mundial concorria
ao Man Booker International Prize, o prêmio lançado para rivalizar com o Nobel de Literatura (o
Booker Prize já era o mais prestigioso da Comunidade Britânica),
mas foi o soturno albanês Ismail
Kadaré que ganhou a honraria.
Toda a carreira de Kadaré ecoa
o conflituoso passado ancestral
da Albânia, o país mais pobre da
Europa, oprimido por uma ditadura comunista das mais retrógradas. Até que tudo ruiu com a
queda do Muro de Berlim.
Foi nesse cenário que Kadaré
escreveu três manuscritos contra
a ditadura que serviriam de testamento político e intelectual caso
morresse. Um deles é agora lançado no Brasil, juntamente de sua
continuação recém-escrita: "A Filha de Agamenon" e "O Sucessor", respectivamente.
Com vários livros editados no
país, o escritor também é conhecido aqui através de "Abril Despedaçado", seu livro adaptado para
o cinema por Walter Salles. Kadaré vive em Paris desde 1990 e foi
de lá que falou à Folha, por telefone, sobre a história dos manuscritos e sobre a ligação de sua literatura com a política.
Folha - Como o manuscrito de "A
Filha de Agamenon" foi parar num
cofre francês?
Ismail Kadaré - Escrevi "A Filha
de Agamenon" durante a ditadura comunista, na década de 80.
Meu editor francês veio para a Albânia especialmente para pegar
os manuscritos do livro e tirá-los
do país. Fiquei muito contente
quando eles já estavam em Paris,
depositados no cofre de um banco. Tentei me preservar para a
eventualidade de a polícia invadir
minha casa. Eu não podia levá-los
pessoalmente porque isso era
proibido por lei.
Folha - O material publicado é fiel
ao manuscrito ou foi modificado?
Kadaré - É original. Mas outro livro meu que saiu nas mesmas
condições, "A Sombra", sofreu
modificações. Mudei os nomes e
as situações como se fosse uma
outra edição, de um livro alemão.
Folha - E por que retomar os personagens de "A Filha de Agamenon" em "O Sucessor", quase 20
anos depois?
Kadaré - Escrevi para o meu prazer, imagino que por coerência...
A idéia inicial era escrever "O Sucessor" naquela época, mas seu
tema era ainda mais perigoso do
que "A Filha...". Por isso não o escrevi na época.
Folha - Há mais manuscritos que
foram guardados?
Kadaré - Sim, uma novela que já
foi publicada na França, "A Decolagem do Migrador". Fiz sair clandestinamente três manuscritos de
livros e alguns poemas. Dei ao
meu editor a chave do cofre no
banco. Ele tinha autorização para
abrir se acontecesse algo comigo.
Folha - O sr. temia pela sua vida?
Kadaré - A precaução valia mesmo para a possibilidade de eu
morrer de causas naturais. Nesse
caso ele tinha a minha autorização para publicar os três manuscritos imediatamente. Segundo a
minha orientação, era para dizer
que esses textos mostravam minha verdadeira relação com o Estado albanês, para impedir que o
regime comunista utilizasse falsamente meu nome. Por exemplo,
dizer que eu era um grande escritor comunista, fiel ao partido etc.
Isso era habitual. Meu editor deveria jogar uma ducha de água
fria, desmentir essa versão e dizer
que ele tinha uma outra verdade
que seria revelada em dois ou três
meses. Foi exatamente essa minha intenção.
Folha - Esses textos são uma espécie de testamento?
Kadaré - Exatamente, eram um
testamento.
Folha - O sr. queria fazer um
"acerto de contas" com sua vida
passada na Albânia?
Kadaré - De certa forma, fiz isso
com outros livros meus, mas nesse caso era uma coisa direta, sem
rodeios. Falo da ditadura albanesa, cito o tirano, o ditador etc. Falo
de forma inequívoca.
Folha - Os livros mostram personagens que têm suas vidas afetadas ou ditadas pelo governo.
Kadaré - Nos regimes comunistas às vezes se passava essa situação trágica da Antigüidade, a luta
do homem contra o destino. O
poder queria tomar o lugar do
destino. Lutar contra o poder era
quase lutar contra o destino.
Folha - Vinte anos separam os
dois livros. O que mudou no sr.?
Kadaré - Eu não mudei meu
ponto de vista. Talvez tenha mudado o estilo. Acho "O Sucessor"
mais grave, mais monumental.
Folha - O sr. sempre utiliza metáforas, alegorias políticas, a mitologia... O sr. sofisticou esse estilo por
causa do regime comunista?
Kadaré - Não, é minha maneira
de escrever. Escrevo hoje como
escrevia antes. Minha escrita não
estava condicionada apenas pela
ditadura comunista.
Folha - O sr. ganhou o Man Booker International Prize e sempre é
citado como candidato ao Prêmio
Nobel. Como vê esses prêmios?
Kadaré - Não penso muito no
Nobel. Já faz 20 anos que estou na
lista, já estou habituado. Fiquei
muito contente com o Man International Booker Prize. Fiquei na
companhia dos maiores escritores do mundo.
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