São Paulo, sábado, 25 de fevereiro de 2006

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POESIA

Brossa une sonetos e poemas visuais

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Em meados de novembro passado, uma pequena multidão se aglomerava no teatro do Centro Universitário MariAntonia, para um evento incomum. Que um grande pequeno número de pessoas (150?) disputasse lugar para ouvir uma leitura de poemas já seria algo fora da rotina. Que entre os leitores estivessem figuras como Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes e Tom Zé explicava em parte o sucesso, mas redobrava a surpresa da coisa. Que na platéia estivessem os prefeitos das cidades de Barcelona e São Paulo dava um colorido ainda mais inesperado à circunstância. Mas o mais insólito de tudo, afinal, eram os poemas do escritor catalão Joan Brossa (1919-1998), que recebiam ali uma bem-humorada anticonsagração.
Aquele evento estava ligado a uma mostra de objetos, cartazes, livros, documentos e poemas visuais de Brossa, assim como à publicação da coletânea "Poesia Vista", traduzida por Vanderley Mendonça (ed. Ateliê). Antes disso, já haviam saído os "Poemas Civis", traduzidos por Ronald Polito e Sérgio Alcides (ed. Sette Letras, 1998). Tudo isso, agora, dá mostras consideráveis de apreço pela obra de um dos autores mais atraentes da poesia européia de vanguarda da segunda metade do século 20.

Compromisso social
Foi João Cabral de Melo Neto -vice-cônsul do Brasil em Barcelona, entre 1947 e 1950- um dos primeiros a chamar a atenção para a literatura de Brossa. Além de prefaciar um de seus livros, incluiu uma "Fábula de Joan Brossa" em "Paisagem com Figuras" (1955). Brossa, de sua parte, sempre deixou clara a influência de Cabral: foi ele o principal responsável pela passagem da poesia "neo-surrealista", praticada pelo catalão na vizinhança de contemporâneos e amigos como Joan Miró e J. V. Foix, para um novo tom de compromisso social, que jamais deixaria de estar presente dali em diante.
É um compromisso muito particular, porque a mistura da episódica loucura surrealista com a infinita loucura da Catalunha não deixa nunca de alimentar seus textos e obras de arte. Brossa foi um praticante virtuosístico de formas fixas, como o soneto e a sextina, tanto quanto de poemas visuais e "poemas-instalações" (em três dimensões, para espaços urbanos). Sem paradoxo, a lição de Cabral se soma ali às lições do dadaísta Duchamp: a "aceitação natural" do que o acaso lhe traz, até "criar um sentido em coisas que não o tinham", como diz um dos poemas reunidos em "Sumário Astral", publicado postumamente em 1999 e que agora aparece em edição trilíngüe, traduzido para o português por Ronald Polito e para o espanhol por Pere Galceran-Uyà.
Assim como outros dois livros de seus últimos anos, "Passat Festes" (1995) e "La Clav a la Boca" (1997), também o "Sumário" cultiva um registro inquietamente sereno. Dividido em duas partes -o poema título e "Outros Poemas"-, o livro tem certo "cunho introspectivo", quase como "um testamento poético do autor, um compêndio ou resumo [...] a que a palavra "sumário" do título é uma clara menção", como diz Polito em sua excelente introdução.
"Do cunho de uma montanha é difícil/ reconhecer as fronteiras./ E continuo escrevendo; não tenho tempo a perder." Recolhidos entre vários outros quase-aforismos -alguns mais, outros menos expressivos- esses versos poderiam servir de epígrafe para uma poesia que agora vê o mundo do alto, sem perder a urgência. "Em forma humana/ e habitado pela linguagem", o poeta "lança os dados" -aceitando o acaso que rege essa linhagem da literatura há mais de cem anos, desde o "Lance de Dados" de Mallarmé- e "[abre] os livros".
Dentro ou fora deles, "as bandeiras são da cor do caos,/ e a serpente é a senhora dos viventes", escreve na abertura de "Sumário Astral". Em catalão: "I la serp és la mestressa dels vivents" -e uma das virtudes dessa edição é a chance de ler Brossa no original, facilmente compreensível com a tradução ao lado, mas sugestivamente distante, com outras linhas e outros ângulos da voz.
Nessa voz, então, "no fundo da paisagem", a pergunta "faz uma curva". Não cabe mais a ela dar uma resposta; mas "há coisas que vistas/ são mais simples que explicadas", e essas últimas visões de Brossa se explicam e replicam com inesperada e indecifrável simplicidade.


Sumário Astral
   
Autor:
Joan Brossa Tradução: Ronald Polito e Pere Galceran Uyà
Editora: Amauta
Quanto: R$ 15 (80 págs.)


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