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POESIA
Brossa une sonetos e poemas visuais
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Em meados de novembro passado, uma pequena multidão
se aglomerava no teatro do Centro Universitário MariAntonia,
para um evento incomum. Que
um grande pequeno número de
pessoas (150?) disputasse lugar
para ouvir uma leitura de poemas
já seria algo fora da rotina. Que
entre os leitores estivessem figuras como Adriana Calcanhotto,
Arnaldo Antunes e Tom Zé explicava em parte o sucesso, mas redobrava a surpresa da coisa. Que
na platéia estivessem os prefeitos
das cidades de Barcelona e São
Paulo dava um colorido ainda
mais inesperado à circunstância.
Mas o mais insólito de tudo, afinal, eram os poemas do escritor
catalão Joan Brossa (1919-1998),
que recebiam ali uma bem-humorada anticonsagração.
Aquele evento estava ligado a
uma mostra de objetos, cartazes,
livros, documentos e poemas visuais de Brossa, assim como à publicação da coletânea "Poesia Vista", traduzida por Vanderley
Mendonça (ed. Ateliê). Antes disso, já haviam saído os "Poemas
Civis", traduzidos por Ronald Polito e Sérgio Alcides (ed. Sette Letras, 1998). Tudo isso, agora, dá
mostras consideráveis de apreço
pela obra de um dos autores mais
atraentes da poesia européia de
vanguarda da segunda metade do
século 20.
Compromisso social
Foi João Cabral de Melo Neto
-vice-cônsul do Brasil em Barcelona, entre 1947 e 1950- um dos
primeiros a chamar a atenção para a literatura de Brossa. Além de
prefaciar um de seus livros, incluiu uma "Fábula de Joan Brossa" em "Paisagem com Figuras"
(1955). Brossa, de sua parte, sempre deixou clara a influência de
Cabral: foi ele o principal responsável pela passagem da poesia
"neo-surrealista", praticada pelo
catalão na vizinhança de contemporâneos e amigos como Joan
Miró e J. V. Foix, para um novo
tom de compromisso social, que
jamais deixaria de estar presente
dali em diante.
É um compromisso muito particular, porque a mistura da episódica loucura surrealista com a
infinita loucura da Catalunha não
deixa nunca de alimentar seus
textos e obras de arte. Brossa foi
um praticante virtuosístico de
formas fixas, como o soneto e a
sextina, tanto quanto de poemas
visuais e "poemas-instalações"
(em três dimensões, para espaços
urbanos). Sem paradoxo, a lição
de Cabral se soma ali às lições do
dadaísta Duchamp: a "aceitação
natural" do que o acaso lhe traz,
até "criar um sentido em coisas
que não o tinham", como diz um
dos poemas reunidos em "Sumário Astral", publicado postumamente em 1999 e que agora aparece em edição trilíngüe, traduzido
para o português por Ronald Polito e para o espanhol por Pere Galceran-Uyà.
Assim como outros dois livros
de seus últimos anos, "Passat Festes" (1995) e "La Clav a la Boca"
(1997), também o "Sumário" cultiva um registro inquietamente
sereno. Dividido em duas partes
-o poema título e "Outros Poemas"-, o livro tem certo "cunho
introspectivo", quase como "um
testamento poético do autor, um
compêndio ou resumo [...] a que a
palavra "sumário" do título é uma
clara menção", como diz Polito
em sua excelente introdução.
"Do cunho de uma montanha é
difícil/ reconhecer as fronteiras./
E continuo escrevendo; não tenho
tempo a perder." Recolhidos entre vários outros quase-aforismos
-alguns mais, outros menos expressivos- esses versos poderiam servir de epígrafe para uma
poesia que agora vê o mundo do
alto, sem perder a urgência. "Em
forma humana/ e habitado pela
linguagem", o poeta "lança os dados" -aceitando o acaso que rege essa linhagem da literatura há
mais de cem anos, desde o "Lance
de Dados" de Mallarmé- e
"[abre] os livros".
Dentro ou fora deles, "as bandeiras são da cor do caos,/ e a serpente é a senhora dos viventes",
escreve na abertura de "Sumário
Astral". Em catalão: "I la serp és la
mestressa dels vivents" -e uma
das virtudes dessa edição é a
chance de ler Brossa no original,
facilmente compreensível com a
tradução ao lado, mas sugestivamente distante, com outras linhas
e outros ângulos da voz.
Nessa voz, então, "no fundo da
paisagem", a pergunta "faz uma
curva". Não cabe mais a ela dar
uma resposta; mas "há coisas que
vistas/ são mais simples que explicadas", e essas últimas visões de
Brossa se explicam e replicam
com inesperada e indecifrável
simplicidade.
Sumário Astral
Autor: Joan Brossa
Tradução: Ronald Polito e Pere Galceran Uyà
Editora: Amauta
Quanto: R$ 15 (80 págs.)
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