São Paulo, quarta, 25 de fevereiro de 1998

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Lobato era patriota que detestava o Brasil



MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Este Carnaval me pegou meio diminuído, com vontade de me esconder no vão das teclas do computador, ou nas dobras da própria roupa, como acontecia com os personagens de "A Chave do Tamanho", de Monteiro Lobato.
É que acabei de ler "Furacão na Botocúndia", excelente biografia de Lobato escrita por Carmen Lucia de Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta (editora Senac). O livro é bom e bonito em todos os sentidos.
Não tem a chatice dessas biografias americanas, detalhadíssimas, que tomam um semestre da vida do leitor, e 20 anos da vida do autor, para dar conta da infância do biografado.
"Furacão na Botocúndia" (ótimo título, também) é bem escrito, muito inteligente na organização dos capítulos -que seguem e não seguem a cronologia, aparecendo exatamente no momento esperado- e belíssimo na parte gráfica, com ilustrações fabulosas.
Chega de elogio! Vale lembrar, neste ano do cinquentenário da morte de Lobato, de outros livros: "Um Jeca nas Vernissages" (Edusp), também um excelente título, de Tadeu Chiarelli, sobre a crítica de arte do escritor; e "Os Filhos de Lobato", de J. Roberto Whitaker Penteado (ed. Dunya), um estudo carinhoso sobre o Sítio da Dona Benta e a influência que exerceu.
Mas eu ia dizendo que a leitura da biografia me deixou diminuído. É que fiquei impressionado com a imensa vitalidade, com a fúria patriótica, com a vontade de comprar brigas, com o idealismo empresarial -se posso dizer assim- de Monteiro Lobato.
Aguentou umas cinco ou seis falências; tentou descobrir petróleo no Mato Grosso; foi preso pela ditadura Vargas; de nietzscheano convicto, terminou "companheiro de viagem" do Partido Comunista; espinafrou Anita Malfatti e criou Emília, Pedrinho e Narizinho. Era ateu, progressista e racista.
O racismo dele me chamava a atenção quando eu lia as histórias do Sítio do Picapau Amarelo. Whitaker Penteado cita frases terríveis sobre tia Nastácia: "Uma fada morre sempre que vê uma negra beiçuda" (Emília, em "Peter Pan"). "Tia Nastácia é uma pobre negra analfabeta." (dona Benta, em "História do Mundo para as Crianças"). Tudo que era "crendice", lembro bem, era coisa de "preta velha".
Mas também tive com Lobato minhas primeiras lições de livre-pensamento, de ateísmo -e não por acaso houve padres querendo censurá-lo.
Muito da religião católica, dizia dona Benta, era pura lenda. Aos 8 anos -eu não era tão criança assim-, tirei dos livros de Lobato uma conclusão estranha: a de que Zeus e todos os deuses do Olimpo realmente existiram e que foram infelizmente substituídos pelo Deus católico, algo como uma troca de governos.
Foi preciso que a mãe de um amigo meu, na escola, me dissesse: não, os deuses gregos eram lendas, o Deus católico é o real, que sempre existiu. Monteiro Lobato gostava de citar uma linda frase de J. M. Barrie, o autor de Peter Pan: "Cada vez que uma criança diz não acreditar mais em fadas, uma fada morre em silêncio".
Claro que, depois da frase restauradora, católica, contra-reformista da mãe do meu amigo, passei a descrer de Deus. Usurpara, óbvia lenda entre outras, minha crença em Diana, Apolo e Afrodite.
Talvez no "Minotauro" e nos "Doze Trabalhos de Hércules" possamos perceber o nietzscheano que foi Lobato. Ou o Monteiro Lobato que Nietzsche foi, buscando criar um culto helênico, aristocrático, racista, para consumo dos louros arianos.
Daí se pode entender melhor a reação de Monteiro Lobato ao modernismo artístico. Queria uma arte "bela", "grega", ideal, sem as distorções e "feiúras" da pintura expressionista, fruto da "degeneração", dizia ele no artigo contra Anita Malfatti.
Nada disso é admirável em Monteiro Lobato. Mas o que espanta, o que tem efeito de "Furacão na Botocúndia", para usar o título do livro, é a vontade, a força polêmica, a pugnacidade desse autor.
Aqui temos a originalidade, a estranheza, a diminuição pessoal que Lobato provoca.
Lutando pelo petróleo, condenando a "preguiça" do Jeca Tatu -que depois ele descobriu ser causada pela doença-, esbravejando contra o modernismo, Monteiro Lobato foi um brasileiro atípico, um raro e bravo homem.
No seguinte sentido: ele era um patriota que detestava o Brasil. Ao contrário da nossa norma cultural, que é a de gostar do país pelas próprias imperfeições. O intelectual brasileiro tende a ser machadiano: cético, progressista, mas tolerante. Diverte-se, afinal, com a comédia brasileira.
Monteiro Lobato, como Silvio Romero no século 19, como Paulo Francis no fim do século 20, era aquela personalidade pública que erra muito, que não se importa de ferir as pessoas, que está tomada de paixão verdadeira e de utopia errônea.
Foi, sobretudo, um republicano. Pois acreditava na capacidade de intervenção de uma voz privada em benefício do interesse público. Enquanto isso, o modernismo vivia de uma apreciação irônica a respeito do Brasil; o desprezo por este país de botocudos, visível em Oswald de Andrade, por exemplo, em Murilo Mendes, em Bandeira, em Drummond, transformou-se em adesão telúrica na obra de Mário de Andrade e Villa Lobos.
Lobato desprezava o país e nossa raça, mas não era um ironista, não era um moderno. Daí que, esperando maravilhas do Brasil, não deixava de criticar nossa estupidez. Implicava conosco. Foi um homem de ação e, no fundo, talvez represente, no cômico e no trágico, a passagem do Brasil rural para o Brasil industrial. Dono de fazendas, neto de visconde, apaixonou-se por Henry Ford e pelos Estados Unidos. Foi um dom Quixote, falido, preso, desmoralizado. Símbolo, talvez, de nossa entrada ambígua no mundo moderno.
E foi tão símbolo disso que o ridicularizamos. Havia algo de falso, de pouco brasileiro, de pouco machadiano em sua personalidade. Ele era capaz de crenças formidáveis. Logo, estava distante de nós. Somos bem mais céticos: glória intelectual de país dominado.



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