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Lobato era patriota que detestava o Brasil
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Este Carnaval me pegou meio
diminuído, com vontade de me
esconder no vão das teclas do
computador, ou nas dobras da
própria roupa, como acontecia
com os personagens de "A Chave
do Tamanho", de Monteiro
Lobato.
É que acabei de ler "Furacão na
Botocúndia", excelente biografia
de Lobato escrita por Carmen
Lucia de Azevedo, Marcia
Camargos e Vladimir Sacchetta
(editora Senac). O livro é bom e
bonito em todos os sentidos.
Não tem a chatice dessas
biografias americanas,
detalhadíssimas, que tomam um
semestre da vida do leitor, e 20
anos da vida do autor, para dar
conta da infância do biografado.
"Furacão na Botocúndia" (ótimo
título, também) é bem escrito,
muito inteligente na organização
dos capítulos -que seguem e
não seguem a cronologia,
aparecendo exatamente no
momento esperado- e
belíssimo na parte gráfica, com
ilustrações fabulosas.
Chega de elogio! Vale lembrar,
neste ano do cinquentenário da
morte de Lobato, de outros
livros: "Um Jeca nas Vernissages"
(Edusp), também um excelente
título, de Tadeu Chiarelli, sobre a
crítica de arte do escritor; e "Os
Filhos de Lobato", de J. Roberto
Whitaker Penteado (ed. Dunya),
um estudo carinhoso sobre o
Sítio da Dona Benta e a influência
que exerceu.
Mas eu ia dizendo que a leitura
da biografia me deixou
diminuído. É que fiquei
impressionado com a imensa
vitalidade, com a fúria patriótica,
com a vontade de comprar
brigas, com o idealismo
empresarial -se posso dizer
assim- de Monteiro Lobato.
Aguentou umas cinco ou seis
falências; tentou descobrir
petróleo no Mato Grosso; foi
preso pela ditadura Vargas; de
nietzscheano convicto, terminou
"companheiro de viagem" do
Partido Comunista; espinafrou
Anita Malfatti e criou Emília,
Pedrinho e Narizinho. Era ateu,
progressista e racista.
O racismo dele me chamava a
atenção quando eu lia as
histórias do Sítio do Picapau
Amarelo. Whitaker Penteado cita
frases terríveis sobre tia
Nastácia: "Uma fada morre
sempre que vê uma negra
beiçuda" (Emília, em "Peter
Pan"). "Tia Nastácia é uma pobre
negra analfabeta." (dona Benta,
em "História do Mundo para as
Crianças"). Tudo que era
"crendice", lembro bem, era
coisa de "preta velha".
Mas também tive com Lobato
minhas primeiras lições de
livre-pensamento, de ateísmo
-e não por acaso houve padres
querendo censurá-lo.
Muito da religião católica, dizia
dona Benta, era pura lenda. Aos 8
anos -eu não era tão criança
assim-, tirei dos livros de
Lobato uma conclusão estranha:
a de que Zeus e todos os deuses
do Olimpo realmente existiram e
que foram infelizmente
substituídos pelo Deus católico,
algo como uma troca de
governos.
Foi preciso que a mãe de um
amigo meu, na escola, me
dissesse: não, os deuses gregos
eram lendas, o Deus católico é o
real, que sempre existiu.
Monteiro Lobato gostava de citar
uma linda frase de J. M. Barrie, o
autor de Peter Pan: "Cada vez
que uma criança diz não
acreditar mais em fadas, uma
fada morre em silêncio".
Claro que, depois da frase
restauradora, católica,
contra-reformista da mãe do
meu amigo, passei a descrer de
Deus. Usurpara, óbvia lenda
entre outras, minha crença em
Diana, Apolo e Afrodite.
Talvez no "Minotauro" e nos
"Doze Trabalhos de Hércules"
possamos perceber o
nietzscheano que foi Lobato. Ou
o Monteiro Lobato que Nietzsche
foi, buscando criar um culto
helênico, aristocrático, racista,
para consumo dos louros arianos.
Daí se pode entender melhor a
reação de Monteiro Lobato ao
modernismo artístico. Queria
uma arte "bela", "grega", ideal,
sem as distorções e "feiúras" da
pintura expressionista, fruto da
"degeneração", dizia ele no
artigo contra Anita Malfatti.
Nada disso é admirável em
Monteiro Lobato. Mas o que
espanta, o que tem efeito de
"Furacão na Botocúndia", para
usar o título do livro, é a vontade,
a força polêmica, a pugnacidade
desse autor.
Aqui temos a originalidade, a
estranheza, a diminuição pessoal
que Lobato provoca.
Lutando pelo petróleo,
condenando a "preguiça" do
Jeca Tatu -que depois ele
descobriu ser causada pela
doença-, esbravejando contra o
modernismo, Monteiro Lobato
foi um brasileiro atípico, um raro
e bravo homem.
No seguinte sentido: ele era um
patriota que detestava o Brasil.
Ao contrário da nossa norma
cultural, que é a de gostar do país
pelas próprias imperfeições. O
intelectual brasileiro tende a ser
machadiano: cético,
progressista, mas tolerante.
Diverte-se, afinal, com a comédia
brasileira.
Monteiro Lobato, como Silvio
Romero no século 19, como Paulo
Francis no fim do século 20, era
aquela personalidade pública
que erra muito, que não se
importa de ferir as pessoas, que
está tomada de paixão
verdadeira e de utopia errônea.
Foi, sobretudo, um republicano.
Pois acreditava na capacidade de
intervenção de uma voz privada
em benefício do interesse
público. Enquanto isso, o
modernismo vivia de uma
apreciação irônica a respeito do
Brasil; o desprezo por este país
de botocudos, visível em Oswald
de Andrade, por exemplo, em
Murilo Mendes, em Bandeira, em
Drummond, transformou-se em
adesão telúrica na obra de Mário
de Andrade e Villa Lobos.
Lobato desprezava o país e nossa
raça, mas não era um ironista,
não era um moderno. Daí que,
esperando maravilhas do Brasil,
não deixava de criticar nossa
estupidez. Implicava conosco. Foi
um homem de ação e, no fundo,
talvez represente, no cômico e no
trágico, a passagem do Brasil
rural para o Brasil industrial.
Dono de fazendas, neto de
visconde, apaixonou-se por
Henry Ford e pelos Estados
Unidos. Foi um dom Quixote,
falido, preso, desmoralizado.
Símbolo, talvez, de nossa
entrada ambígua no mundo
moderno.
E foi tão símbolo disso que o
ridicularizamos. Havia algo de
falso, de pouco brasileiro, de
pouco machadiano em sua
personalidade. Ele era capaz de
crenças formidáveis. Logo,
estava distante de nós. Somos
bem mais céticos: glória
intelectual de país dominado.
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