São Paulo, sábado, 25 de março de 2006

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RODAPÉ

Trauma, suicídio, forma severa

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Em nenhum lugar do mundo se dá tanta importância à poesia: é somente em nosso país que se fuzila por causa de um verso." A frase do poeta Óssip Mandelstam (citada por Boris Schnaiderman em "Os Escombros e o Mito") poderia ser complementada: somente na Rússia -ou melhor, na União Soviética- os poetas suicidavam-se com tanta freqüência, como aconteceu com Serguei Iessiênin, Vladimir Maiakóvski e Marina Tsvetáieva.
Ironias à parte, fato é que a literatura russa tem uma longa tradição de escritores que preferem morrer a renunciar a idéias enraizadas no solo de um país cujos dilaceramentos não conseguem abandonar. Caso pungente é o de Tsvetáieva (1892-1941), de quem acabam de ser publicadas duas coletâneas bilíngües: "Indícios Flutuantes" (seleção e tradução de Aurora F. Bernardini) e "Marina" (prefácios e versões de Décio Pignatari). Os livros valem também pelos textos analíticos, que vão além da mera apresentação.
Aurora Bernardini faz em "Indícios Flutuantes" um estudo introdutório que pontua a trajetória literária dessa "poeta sempre inspirada (quase sempre "possessa')" com os acontecimentos traumáticos de sua vida.
Um dos fatos capitais de sua biografia foi a participação do marido Serguei Efron na Primeira Guerra, lutando pelo Exército Branco -que internamente se opunha ao Exército Vermelho, ligado aos bolcheviques. Efron desapareceu no "front" durante o conflito mundial e só em 1922, depois de uma guerra civil que culminou no triunfo dos comunistas -e durante a qual sua filha mais nova, Irina, morreu de inanição num pensionato-, Tsvetáieva vai a seu encontro em Berlim.
Passados três anos em Praga e 14 na França -período no qual mantém correspondências com Boris Pasternak e Rilke-, ela volta à União Soviética, onde sua filha Ariadna e Efron são presos. Em 1941, refugiada na República Tártara, para onde parte da população fora evacuada por causa do confronto com os nazistas, enforca-se no dia 31 de agosto.
Como é comum nos casos de suicídio, nenhum fato isolado explica o gesto radical. Da mesma maneira, os acontecimentos de sua vida -incluindo amores adúlteros e ligações homossexuais- aparecem de modo discreto nessa obra severa, áspera, cuja "dicção clássico-arcaizante (...) confere aos poemas certa gravidade elegante e ponderada" (nas palavras de Bernardini).
"Indícios Flutuantes" cobre todas as fases de Tsvetáieva. Esse comentário, portanto, não corresponde à totalidade dos poemas. Há momentos de efusividade lírica ("Fogo leve, dançando sobre os cachos,/ É o sopro da inspiração!") que contrastam com sua "assimilação do cubo-futurismo russo" ou com o rigoroso jogo de imagens contido em "A Concha".
A tônica dominante será, contudo, uma sintaxe segmentária, como nesse trecho do ciclo "Insônia" em que a relação lógica entre os sintagmas é suspensa pelo travessão: "Há um negro álamo e no vitral -luz,/ E som na torre e na mão -flor,/ E este passo de ninguém -atrás,/ E esta sombra, mas eu não -estou".
Em "Marina", as escolhas de Décio Pignatari também acentuam sua "predileção pela organização frasal paratática", que vai "coisificando todos os formantes do complexo poético" e transformando o poema em "partitura tipográfica", em "coesia" -dentro de uma tradição que leva do romantismo às vanguardas.
O livro de Pignatari pode render discussões, já que ele assume sua "lastimável ignorância do idioma russo" e cria uma teoria da tradução como "montagem gestáltica" por amostragens e colagens de procedimentos aprendidos em traduções para outras línguas. Em compensação, o volume inclui o "Poema do Fim", uma longa seqüência de cenas "cubo-expressionistas", cuja intensidade faz esquecer o adágio segundo o qual todo tradutor é um traidor.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

Indícios Flutuantes
    
Autora: Marina Tsvetáieva
Tradução: Aurora F. Bernardini
Editora: Martins
Quanto: R$ 36,50 (148 págs.)

Marina
    
Autora: Marina Tsvetáieva
Tradução: Décio Pignatari
Editora: Travessa dos Editores
Quanto: R$ 28 (152 págs.)


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