|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RODAPÉ
Trauma, suicídio, forma severa
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Em nenhum lugar do mundo se dá tanta importância
à poesia: é somente em nosso país
que se fuzila por causa de um verso." A frase do poeta Óssip Mandelstam (citada por Boris Schnaiderman em "Os Escombros e o
Mito") poderia ser complementada: somente na Rússia -ou melhor, na União Soviética- os poetas suicidavam-se com tanta freqüência, como aconteceu com
Serguei Iessiênin, Vladimir Maiakóvski e Marina Tsvetáieva.
Ironias à parte, fato é que a literatura russa tem uma longa tradição de escritores que preferem
morrer a renunciar a idéias enraizadas no solo de um país cujos dilaceramentos não conseguem
abandonar. Caso pungente é o de
Tsvetáieva (1892-1941), de quem
acabam de ser publicadas duas coletâneas bilíngües: "Indícios Flutuantes" (seleção e tradução de
Aurora F. Bernardini) e "Marina"
(prefácios e versões de Décio Pignatari). Os livros valem também
pelos textos analíticos, que vão
além da mera apresentação.
Aurora Bernardini faz em "Indícios Flutuantes" um estudo introdutório que pontua a trajetória literária dessa "poeta sempre inspirada (quase sempre "possessa')"
com os acontecimentos traumáticos de sua vida.
Um dos fatos capitais de sua biografia foi a participação do marido
Serguei Efron na Primeira Guerra,
lutando pelo Exército Branco
-que internamente se opunha ao
Exército Vermelho, ligado aos bolcheviques. Efron desapareceu no
"front" durante o conflito mundial e só em 1922, depois de uma
guerra civil que culminou no
triunfo dos comunistas -e durante a qual sua filha mais nova,
Irina, morreu de inanição num
pensionato-, Tsvetáieva vai a seu
encontro em Berlim.
Passados três anos em Praga e 14
na França -período no qual
mantém correspondências com
Boris Pasternak e Rilke-, ela volta à União Soviética, onde sua filha
Ariadna e Efron são presos. Em
1941, refugiada na República Tártara, para onde parte da população fora evacuada por causa do
confronto com os nazistas, enforca-se no dia 31 de agosto.
Como é comum nos casos de
suicídio, nenhum fato isolado explica o gesto radical. Da mesma
maneira, os acontecimentos de
sua vida -incluindo amores
adúlteros e ligações homossexuais- aparecem de modo discreto nessa obra severa, áspera,
cuja "dicção clássico-arcaizante
(...) confere aos poemas certa gravidade elegante e ponderada" (nas
palavras de Bernardini).
"Indícios Flutuantes" cobre todas as fases de Tsvetáieva. Esse comentário, portanto, não corresponde à totalidade dos poemas.
Há momentos de efusividade lírica ("Fogo leve, dançando sobre os
cachos,/ É o sopro da inspiração!")
que contrastam com sua "assimilação do cubo-futurismo russo"
ou com o rigoroso jogo de imagens contido em "A Concha".
A tônica dominante será, contudo, uma sintaxe segmentária, como nesse trecho do ciclo "Insônia" em que a relação lógica entre
os sintagmas é suspensa pelo travessão: "Há um negro álamo e no
vitral -luz,/ E som na torre e na
mão -flor,/ E este passo de ninguém -atrás,/ E esta sombra, mas
eu não -estou".
Em "Marina", as escolhas de Décio Pignatari também acentuam
sua "predileção pela organização
frasal paratática", que vai "coisificando todos os formantes do
complexo poético" e transformando o poema em "partitura tipográfica", em "coesia" -dentro
de uma tradição que leva do romantismo às vanguardas.
O livro de Pignatari pode render
discussões, já que ele assume sua
"lastimável ignorância do idioma
russo" e cria uma teoria da tradução como "montagem gestáltica"
por amostragens e colagens de
procedimentos aprendidos em
traduções para outras línguas. Em
compensação, o volume inclui o
"Poema do Fim", uma longa seqüência de cenas "cubo-expressionistas", cuja intensidade faz esquecer o adágio segundo o qual
todo tradutor é um traidor.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
Indícios Flutuantes
Autora: Marina Tsvetáieva
Tradução: Aurora F. Bernardini
Editora: Martins
Quanto: R$ 36,50 (148 págs.)
Marina
Autora: Marina Tsvetáieva
Tradução: Décio Pignatari
Editora: Travessa dos Editores
Quanto: R$ 28 (152 págs.)
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Panorâmica - Evento: "Diálogos Impertinentes" faz debates na segunda sobre universidade e evolucionismo Índice
|