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Inconsciência ocupa lugar nos quadros de Botero
MARCELO COELHO da
Equipe de Articulistas
Está aberta a temporada de
exposições de artes plásticas
em São Paulo. Bourdelle, Botero, De Chirico, mestres holandeses, todos parecem competir
pelo público, que é sacudido de
casa e se vê disposto a enfrentar uma fila moderada.
Virou uma espécie de mania.
O paulistano comprova duas
convicções muito suas, a de
que São Paulo é uma metrópole e a de que todo cidadão gosta de fila. Não há tantas filas
assim na Pinacoteca, onde se
dá a exposição "Bourdelle". As
filas para ver Botero são pequenas, se comparadas às da
mostra "Monet", e estas são
ainda menores quando nos
lembramos do inferno "Rodin".
Mede-se, não sem razão, o
sucesso de cada mostra pelo
grau de sacrifício que impôs ao
público. Aquilo que era característico das vanguardas -o
desconforto que impunham à
mentalidade do espectador-
se transfere para tudo o que
precede a exposição. Filas, estacionamento, trânsito, guardadores de carro, até se produzir uma aceitação conformada
e uma admiração de shopping
center.
Felizmente isso não tem
acontecido o tempo todo. No
ano passado, a exposição
"Max Ernst", no MuBE, estava
tranquilíssima, por exemplo.
Mas daí surge uma espécie de
fracasso. Como? O que faltou?
Como não tem fila?
Intervém aí a publicidade.
Não tenho nada contra o recurso a agências de publicidade para divulgar eventos culturais. Mas acho que o bombardeio de anúncios tende a
ser contraproducente. Foi assim na exposição "Monet"
-parecia que o mundo ia acabar, se você não visse aqueles
quadros.
O caso Botero é francamente
imbecilizador. Os anúncios
brincam com uma obviedade:
ele pinta gente gorda. Vá ver a
Mona Lisa gorda. Vá ver a
mulher gorda, vá ver o homem
gordo.
Ora, por que raios eu tenho
de ver essa obesidade toda?
Faz bem o José Simão, que diz
que está fora desse programa.
Mesmo assim, fui ver a exposição "Botero". O maior risco
desse pintor é exatamente o da
caricatura. Como tudo indica
que ele faz caricatura -personagens gordíssimas-, tendemos a caricaturizar o próprio
pintor: "Ah, o das personagens
gordíssimas!". E a propaganda
contribui para isso.
De modo que as coisas se resumem ao plano da constatação, da vverificação de fato,
quanta gordura! A publicidade enfatiza o aspecto humorístico de Botero.
Sem dúvida, esse aspecto
existe. Sem dúvida, Botero se
repete infinitamente. Mas não
é um pequeno prazer o de
acompanhar o quanto ele pode
introduzir de variações nessa
fórmula meio óbvia, a da gordura. Vendo a exposição, cada
quadro aparece como uma nova solução dentro dos rígidos
limites impostos pelo pintor.
Como fazer uma natureza-morta "gorda"? Como pintar flores "gordas"? Ele consegue.
Mas estamos ainda no campo da apreciação banal. Não
pretendo provar que Botero é
um grande artista, mas tento
seguir um raciocínio.
À primeira vista, é claro o intuito crítico, de esquerda, nas
obras de Botero. Quando ele
retrata uma burguesia obesa,
um presidente e sua primeira-dama redondos e vazios,
tudo se resume a uma fórmula
ideológica: eis o retrato da
opressão latino-americana, eis
a banalidade satisfeita da
classe dominante.
Só que não é bem assim. Botero pinta guerrilheiros, pinta
Jesus Cristo, pinta gente do povo, pinta a Mona Lisa, pinta
seu auto-retrato, seguindo a
mesma estratégia de engordamento. O que isso quer dizer?
Ele faz referência a mitos e
figuras consagradas da arte
ocidental. Leonardo Da Vinci,
os mestres holandeses, Velázquez, Cézanne, Picasso, tudo
se transforma em gado, em boi
gordo. O normal seria retratar
"os inimigos" -os militares,
os padres, os burgueses- como bois, preservando alguma
nobreza, alguma elegância, algum empeno épico aos adversários do sistema.
Botero não salva ninguém
nem a si mesmo: seus quadros
o retratam como mais um gordo dentro da comédia. Por
que?
É como se ele dissesse que toda arte burguesa é inflada e
pomposa, que tanto Velázquez
quanto o presidente da República podem ser objetos de
uma mesma crítica. A inautenticidade dessas figuras vazias, com olhar idiota, não é
ttipicamentelatino-americana. Ao contrário, de uma perspectiva latino-americana, tudo, mesmo a arte européia, assume um papel pomposo e
idiota. A atitude oposicionista
de Botero não se resume à crítica dos burgueses colombianos; universaliza-se, volta-se
contra a Espanha e a tradição
européia.
É como se um camponês
muito magro, um desempregado urbano, um desvalido imaginasse o prestígio social e cultural de acordo com o critério
da gordura -que unifica ditadores e presidentes civis, padres e grandes obras-primas.
Mas aí estaríamos diante de
uma crítica bastante grosseira,
e de uma pintura afinal medíocre. O pensamento de Botero, se posso dizer assim, é mais
complexo.
Ainda que caricaturais, as
pinturas de Botero não são engraçadas, não são humorísticas como faz crer a publicidade em torno da exposição. Botero pinta seus bonecos ridículos de forma solene, oficial.
Imita o ponto de vista da arte
popular. O que há de exato, de
moroso, de fatual, de fotográfico na arte popular se reitera
aqui, numa ironia sem obliquidade, sem "esperteza".
O que espanta nos quadros
de Botero não é sua graça, mas
sim o que têm de "literal". A
imobilidade da pose, a uniformidade das cores, a ausência
de vibração, de luz, de expressão, de movimento, tudo dá a
idéia de uma pintura "documental", tão crua e nua como
uma foto tirada em aparelho
automático.
Essas fotos não são "críticas", a distorção e a gordura
não são procedimentos expressivos. Botero simula uma espécie de falsa inconsciência. Sua
denúncia social aparece em
cores limpas, como que num
tom ao mesmo tempo respeitoso e debochado. A ironia de
Botero não é mais oblíqua, e
sim frontal, quase ingênua no
caprichoso e no realista do traço.
Seus personagens ocupam a
tela como latifundiários. Expulsaram os posseiros, expulsaram os índios, expulsaram
toda inquietação da tela: imobilizam-se. "Fotografados" por
Botero, esse lambe-lambe, não
se mexem mais. Nessa relação
hierática, dura, plana com o
espaço ilustram a realidade latino-americana. A de um vazio inchado, a de um território
vago e entretanto com um dono; um espaço ocupado pela
fatuidade, numa espécie de bócio mental. Se é que há mente.
Nos quadros de Botero, assim
como na América Latina, é como se a inconsciência ocupasse
lugar.
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