São Paulo, quarta, 25 de março de 1998

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"Divinas Palavras" é perfeita demais

NELSON DE SÁ
enviado especial a Curitiba

"Divinas Palavras", um espetáculo baiano mostrado até anteontem no Festival de Teatro de Curitiba e que fará apresentações em São Paulo na semana que vem, é elogiável em praticamente todos os sentidos.
O texto do espanhol Ramón del Valle-Inclán é da série que intitulou "esperpento", na qual distorce as normas do teatro, adiantando muito do chamado teatro do absurdo, e faz uma massacrante -e sempre moderna- imagem da corrupção social.
A adaptação de Elomar e Xangai, compositores de música popular, transpõe a peça para "os falares subdialetais do nosso povo" quase como uma nova criação, um novo texto. Não há o menor traço de inadequação.
A direção da jovem alemã Nehle Franke tem uma perfeição detalhista que vai da cenografia de casebres rurais, criada por Ayrson Heráclito e Haroldo Garay, ao domínio dos músculos faciais dos seus atores.

Relógio
Atores que impressionam pelo rigor da interpretação, não apenas na modelação física, nos gestos, mas no que permitem vazar de sensualidade.
"Divinas Palavras" é um relógio, imagem que é reforçada pela platéia giratória, que vai de cenário em cenário, com grande efeito sobre o espectador.
Mas há algo de frio, de exterior, por mais envolvidos que se mostrem os intérpretes, em tamanha perfeição para retratar, afinal, a miséria. Um personagem baba, mas é uma baba esteticamente inatacável, que se repete idêntica, cena sobre cena.
(Na trama, uma mulher miserável usa um deficiente para pedir esmolas, ao mesmo tempo em que trai o marido, o que leva à reação dos demais miseráveis.)
Em várias passagens a peça vence a barreira da perfeição formal, torna-se grande teatro. Mas a sensação geral é de distância, como se não tratasse, afinal, de brasileiros, "o nosso povo".
"Divinas Palavras" não escapa da regra da produção contemporânea de grande parte do teatro nordestino, vista em temporadas em São Paulo ou festivais como o de Recife. Um teatro que bebe na arte popular, mas que a filtra pela veia formal.
A peça lembra -e muito- a bem-sucedida "Vau da Sarapalha", da Paraíba, bem como "Brincante", do pernambucano Antonio Nóbrega, e deixa a impressão de que o teatro nordestino parou.



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