|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Inquietações para baderneiros
Domingo passado, na Folha, Fernando Henrique
Cardoso disse a Eliane Cantanhêde que a inquietação atual
das ruas "não é social, é política".
E comentou que as recentes manifestações dos funcionários públicos em São Paulo foram "sem
sentido".
É legítimo concluir que, para o
presidente, as manifestações sociais fazem sentido, as políticas
não. Ou seja, manifestante é sério
quando protesta por razões concretas, como salário e benefícios.
Mas, quando ele protesta com intenções políticas, a coisa não se
justifica.
Fiquei meio pasmo. Lembro-me
de um tempo quando, nas fileiras
da esquerda, valia exatamente o
inverso. As únicas manifestações
dignas eram as políticas, que reivindicavam poder de decisão e
mudanças nas relações sociais. As
manifestações que pediam apenas melhorias quantitativas
eram suspeitas, pois pareciam
sempre cúmplices da situação.
Na segunda-feira, outra entrevista na Folha. É a vez de Anthony Giddens, o grande sociólogo inglês que se tornou teórico oficial da terceira via. É generoso e
bem-intencionado. Ele quer estabelecer a diferença entre a nova
social-democracia -que ele defende- e o neoliberalismo. No
meio disso, declara que, na verdade, o que as pessoas querem é
"educação básica, saúde e pensões".
É claro que não há como não
concordar. Só podemos querer essas três coisas, que são ótimas e
fazem falta. Mas começo a sentir
uma raiva surda: será que queremos só isso?
Seguindo Giddens e FHC, parece que entrei na fila errada. Achava que estivessem distribuindo cidadania e participação, mas descubro que distribuem balas e esparadrapos. Pior: querem me
convencer de que é isso mesmo
que eu quero (ou devo querer).
Talvez, pensei a essa altura, eu
precise escolher uma companhia
mais radical. Pois bem, fui para
João Pedro Stedile, entrevistado
por Fernando Canzian na Folha
de domingo retrasado. Stedile expunha assim seu "modelo": "Vamos produzir bens de consumo de
massa. Nosso povo está precisando de calçado, de roupa, de casa.
Se a gente se meter a produzir os
10 milhões de moradias para as
pessoas que moram em barracos,
imagine o que vai ser preciso de
cimento, vidros, luz elétrica. Seria
um "boom" de desenvolvimento.
E, nesse modelo, tem de ter distribuição de renda. Tem de ter salário maior".
De novo, é difícil discordar. Como Henry Ford, Stedile gostaria
de ultrapassar um capitalismo
arcaico e elitista, criando o consumo de massa indispensável para
o crescimento. De qualquer forma, a pobreza e a miséria brasileiras são tão violentas que pedir
uma melhor distribuição da riqueza já é uma ousadia.
Em suma, a proposta é simpática, assim como são simpáticas as
esperanças de Giddens. Agora, se
-num arco que vai de Stedile a
Giddens- as reivindicações são
todas quantitativas, então talvez
Fernando Henrique tenha razão,
e as inquietações políticas não façam mais sentido.
Para essa inesperada tríplice
aliança (FHC, Giddens e Stedile),
o homem do futuro será o resultado de uma melhor distribuição
das riquezas. O que serão as riquezas, como serão produzidas,
como se distribuirá o poder -essas seriam questões já resolvidas.
Só sobra regrar detalhes quantitativos. O sistema propriamente
político no qual vivemos se torna
um dado da natureza.
Está lá, como a Pedra da Gávea
ou a serra da Mantiqueira -pano de fundo inalterável de nossas
agitações, cujo único alvo é distributivo.
Nessa ótica, ser de esquerda hoje não é um projeto político, mas
uma sensibilidade generosa: uma
preocupação com as desigualdades.
Nada contra. No entanto, a
substituição das esperanças políticas pelas preocupações sociais é
uma manifestação do cansaço da
modernidade. As questões políticas são incertas, complicadas: como dividir o poder, como inventar formas de participação popular efetiva nas decisões que importam?
Parece ser mais cômodo definir
o bem-estar em termos materiais
e considerar que ele é nossa única
ambição. Distribuiremos a todos
cestas básicas, remédios e pensões. Para isso, será necessário lutar, sem dúvida. Mas, ao menos,
nossos objetivos serão claros.
É o mesmo cansaço que alimenta nossa confiança excessiva nas
pílulas da felicidade ou nas drogas: balas para não esquentar a
cabeça.
A modernidade é o tempo da
subjetividade inquieta, angustiada e insatisfeita. Por isso, ela cansa.
Agora, o cansaço é apenas uma
tendência. As inquietudes políticas não estão mortas, longe disso.
Mas deixo isso para outra coluna,
talvez a próxima.
PS: Alguém acabará perguntando: mas o que você quer, além
das reivindicações sociais? Voltar
ao sonho da propriedade coletiva
dos meios de produção? Ou tem
outra utopia pós-comunista? Pois
bem, em 68, eu conhecia alguém
que era um pequeno empresário,
mas contemplava os eventos de
maio em Paris como se ele fosse a
Coca-Cola Company em pessoa.
Sentia-se ameaçado e perguntava: mas o que vocês querem, afinal? O espírito inventivo daquela
época me sugeriu uma resposta
que vale ainda: queremos, disse, o
direito de querer sem ter de saber
exatamente o que queremos. Mas
são idéias de barderneiros, não é?
E-mail - ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Narcisa lança "Ai, Que Loucura!" no Flag Próximo Texto: Teatro: Pia Fraus reflete Dolly e outros "pesadelos" em "Frankenstein" Índice
|