São Paulo, quinta-feira, 25 de maio de 2000


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CONTARDO CALLIGARIS

Inquietações para baderneiros

Domingo passado, na Folha, Fernando Henrique Cardoso disse a Eliane Cantanhêde que a inquietação atual das ruas "não é social, é política". E comentou que as recentes manifestações dos funcionários públicos em São Paulo foram "sem sentido".
É legítimo concluir que, para o presidente, as manifestações sociais fazem sentido, as políticas não. Ou seja, manifestante é sério quando protesta por razões concretas, como salário e benefícios. Mas, quando ele protesta com intenções políticas, a coisa não se justifica.
Fiquei meio pasmo. Lembro-me de um tempo quando, nas fileiras da esquerda, valia exatamente o inverso. As únicas manifestações dignas eram as políticas, que reivindicavam poder de decisão e mudanças nas relações sociais. As manifestações que pediam apenas melhorias quantitativas eram suspeitas, pois pareciam sempre cúmplices da situação.
Na segunda-feira, outra entrevista na Folha. É a vez de Anthony Giddens, o grande sociólogo inglês que se tornou teórico oficial da terceira via. É generoso e bem-intencionado. Ele quer estabelecer a diferença entre a nova social-democracia -que ele defende- e o neoliberalismo. No meio disso, declara que, na verdade, o que as pessoas querem é "educação básica, saúde e pensões".
É claro que não há como não concordar. Só podemos querer essas três coisas, que são ótimas e fazem falta. Mas começo a sentir uma raiva surda: será que queremos só isso?
Seguindo Giddens e FHC, parece que entrei na fila errada. Achava que estivessem distribuindo cidadania e participação, mas descubro que distribuem balas e esparadrapos. Pior: querem me convencer de que é isso mesmo que eu quero (ou devo querer).
Talvez, pensei a essa altura, eu precise escolher uma companhia mais radical. Pois bem, fui para João Pedro Stedile, entrevistado por Fernando Canzian na Folha de domingo retrasado. Stedile expunha assim seu "modelo": "Vamos produzir bens de consumo de massa. Nosso povo está precisando de calçado, de roupa, de casa. Se a gente se meter a produzir os 10 milhões de moradias para as pessoas que moram em barracos, imagine o que vai ser preciso de cimento, vidros, luz elétrica. Seria um "boom" de desenvolvimento. E, nesse modelo, tem de ter distribuição de renda. Tem de ter salário maior".
De novo, é difícil discordar. Como Henry Ford, Stedile gostaria de ultrapassar um capitalismo arcaico e elitista, criando o consumo de massa indispensável para o crescimento. De qualquer forma, a pobreza e a miséria brasileiras são tão violentas que pedir uma melhor distribuição da riqueza já é uma ousadia.
Em suma, a proposta é simpática, assim como são simpáticas as esperanças de Giddens. Agora, se -num arco que vai de Stedile a Giddens- as reivindicações são todas quantitativas, então talvez Fernando Henrique tenha razão, e as inquietações políticas não façam mais sentido.
Para essa inesperada tríplice aliança (FHC, Giddens e Stedile), o homem do futuro será o resultado de uma melhor distribuição das riquezas. O que serão as riquezas, como serão produzidas, como se distribuirá o poder -essas seriam questões já resolvidas. Só sobra regrar detalhes quantitativos. O sistema propriamente político no qual vivemos se torna um dado da natureza.
Está lá, como a Pedra da Gávea ou a serra da Mantiqueira -pano de fundo inalterável de nossas agitações, cujo único alvo é distributivo.
Nessa ótica, ser de esquerda hoje não é um projeto político, mas uma sensibilidade generosa: uma preocupação com as desigualdades.
Nada contra. No entanto, a substituição das esperanças políticas pelas preocupações sociais é uma manifestação do cansaço da modernidade. As questões políticas são incertas, complicadas: como dividir o poder, como inventar formas de participação popular efetiva nas decisões que importam?
Parece ser mais cômodo definir o bem-estar em termos materiais e considerar que ele é nossa única ambição. Distribuiremos a todos cestas básicas, remédios e pensões. Para isso, será necessário lutar, sem dúvida. Mas, ao menos, nossos objetivos serão claros.
É o mesmo cansaço que alimenta nossa confiança excessiva nas pílulas da felicidade ou nas drogas: balas para não esquentar a cabeça.
A modernidade é o tempo da subjetividade inquieta, angustiada e insatisfeita. Por isso, ela cansa.
Agora, o cansaço é apenas uma tendência. As inquietudes políticas não estão mortas, longe disso. Mas deixo isso para outra coluna, talvez a próxima.
PS: Alguém acabará perguntando: mas o que você quer, além das reivindicações sociais? Voltar ao sonho da propriedade coletiva dos meios de produção? Ou tem outra utopia pós-comunista? Pois bem, em 68, eu conhecia alguém que era um pequeno empresário, mas contemplava os eventos de maio em Paris como se ele fosse a Coca-Cola Company em pessoa. Sentia-se ameaçado e perguntava: mas o que vocês querem, afinal? O espírito inventivo daquela época me sugeriu uma resposta que vale ainda: queremos, disse, o direito de querer sem ter de saber exatamente o que queremos. Mas são idéias de barderneiros, não é?


E-mail - ccalligari@uol.com.br



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