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"Águas de Março" teria sido inspirada em folclore
O maior dos plágios?
Pesquisadores dizem que semelhança com canção folclórica descredencia vitória em enquete
LÚCIO RIBEIRO
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
A eleição de "Águas de Março"
(1972) como melhor canção da
música popular brasileira em enquete concluída pela Folha há
uma semana desperta protestos
no coro de descontentes. Segundo
pesquisadores que atuam na linha
mais combativa da análise de música popular, a canção de Tom Jobim (1927-94) não poderia sair
vencedora porque não seria obra
original, e sim motivo "roubado"
de uma canção folclórica anterior.
A fonte de "inspiração" de Tom
estaria num disco obscuro de
1956, selo Copacabana, número
11.056, chamado "Cinco Estrelas
Apresentam Inara". Musicista,
compositora e pesquisadora, Inara recolheu do folclore "Água do
Céu", que na faixa 5 do lado B do
LP é interpretada pela hoje obscurecida Leny Eversong (1920-84).
Letra e melodia se assemelham
às de "Águas de Março", nos versos religiosos que cantam "é chuva de Deus, é chuva abençoada/ é
água divina, é alma lavada".
Segundo o pesquisador José Ramos Tinhorão, notório opositor
da bossa nova desde sua eclosão,
essa versão já era adaptação de
um ponto de macumba recolhido
em 1933 por J.B. de Carvalho, que
diz "é pau, é pedra, é seixo miúdo/
roda baiana por cima de tudo".
Embora admirador de Jobim, o
crítico musical Luís Antônio Giron vai na mesma linha: ""Águas
de Março" não merece estar como
a maior porque é macaqueada do
folclore. Não é só inspirada, ela é
calcada mesmo. Villa-Lobos se
apropriava de temas folclóricos,
mas citava a fonte. Tom não citou
a fonte. Assinou e pronto. Não foi
uma iluminação da natureza, do
compositor que estava com os bichinhos, aí veio a anta...".
Giron critica a elite cultural que
colocou a canção de Tom no trono na enquete feita entre 214 pessoas, entre personalidades culturais, musicais e jornalistas.
"A elite cultural brasileira não
está preparada para emitir muitas
opiniões de cátedra. Precisa se informar mais, as fontes estão aí.
Nossa falta de educação endêmica
cria uma elite que se acha todo-poderosa, mas não tem preparo
algum. Reinventam a roda,
acham que ela surgiu ontem", diz.
Tinhorão vocifera: "Vocês promovem essas enquetes entre pessoas da classe média, que funcionam em circuito fechado e pensam que estão na TV aberta. Acho
isso safado. Digam então que é o
gosto dessa classe, que é dentro
desses critérios. Não venham com
essa chantagem. "Águas de Março" é folclore. Fico sempre como
vilão, mas eu tenho as provas".
Outro ícone da bossa entra na
polêmica. Em 1999, o pianista
João Donato afirmou em entrevista a Giron, na "Gazeta Mercantil", que Jobim lhe dizia que "artista imaturo imita, mas artista
que é artista copia mesmo".
Donato relativiza a afirmação,
sem negá-la: "Tom me dizia: "Ah,
estou aqui roubando as partes
mais bonitas das músicas dos outros". Era em tom de brincadeira,
mas pode ser aplicado à prática.
Não quero entrar em discussões
sobre certo e errado, a história
não deve se prender a detalhezinhos. Isso é assim mesmo, eu faço
isso também. Era de propósito".
Donato conclui: "Tom está longe desses julgamentos, é o nosso
melhor compositor. "Águas de
Março" pode não ser uma obra-prima, mas é agradável de ouvir.
Acho que merecia ganhar".
A Folha tentou, sem sucesso,
ouvir a família de Jobim, mas estudiosos próximos à bossa refutam as teses de Tinhorão e Giron.
É o caso do professor e músico
Luiz Tatit, ex-integrante do grupo
Rumo. "Pode-se falar que toda
música é plágio a princípio, já que
se trabalham sempre as mesmas
sete notas musicais. Não conheço
a música nem tenho conhecimento sobre essa acusação. Cheira a
invenção. Acho muito difícil ter
ocorrido isso, principalmente se é
Tinhorão quem diz", ataca.
Não se trata de invenção -a
Folha ouviu a canção de Leny
Eversong no acervo de Tinhorão,
ela existe. Mas outro respeitado
pesquisador, Zuza Homem de
Mello, pactua com Tatit o desconhecimento de "Água do Céu":
"É delírio puro. Nunca ouvi falar nessa música. Há várias canções de Tom Jobim às quais são
atribuídas a palavra plágio. Isso é
discutível. É homenagem, não é
plágio".
"É possível provar por A mais B
que a música é uma obra-prima.
Achar que pode ser plágio é uma
maneira miúda de quem não tem
a percepção do alcance da música.
É o mesmo que falar que a estátua
da Vênus de Milo é uma merda
porque não tem um braço."
Ele defende sua Vênus: ""Águas
de Março" vencer é resultado para
ser comemorado. Sua eleição
mostra um amadurecimento de
opinião dos que votaram. Não conheço a outra música, mas por experiência dá para afirmar que
quem falou que é plágio não entende de música, nunca compôs
nada, não sabe de harmonia".
Sem haver ouvido tais argumentos, Tinhorão tem resposta
no gatilho: "As pessoas simplesmente desconhecem a fonte. É ignorância acadêmica, auto-suficiente. Só os limitados se baseiam
no que não conhecem para afirmar algo com convicção".
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