São Paulo, sexta-feira, 25 de maio de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

O melhor piloto do mundo e a falta de combustível

Nunca houve melhor piloto na história. O consenso formou-se dentro e fora da companhia aérea: desde Ícaro, Leonardo da Vinci, Santos Dumont e John Wayne -aquele do filme ""Um Fio de Esperança", em que salva 1 milhão de passageiros pilotando um avião que perdera as duas asas, os quatro motores e os tanques de combustível. Mesmo assim, John Wayne pousou são e salvo ao som de uma trilha sonora que fez sucesso.
O primeiro a acreditar que era mesmo o melhor foi o próprio. Achava fácil pilotar qualquer tipo de avião, que ele chamava de ""aeronave" porque era bem articulado. Um apologista dele garantia que, à luz da filosofia, na qual era mestre, somente um piloto estava capacitado a cruzar os céus em todas as direções, pois somente ele sabia onde pousar e fugir das tempestades.
Era tão bom que, segundo seus amigos, seria capaz de conduzir o avião com os olhos fechados, sem apoio do pessoal da terra, que só servia para atrapalhar. Ele tinha os olhos no infinito. Os demais só enxergavam para trás.
Contavam prodígios a seu respeito. O mais notável deles foi a façanha de decolar num combalido teco-teco, modelo AC (antes de Cristo) e, durante o vôo, ter transformado o decadente aparelhinho num possante supersônico, capaz de chegar às estrelas.
Sua infalibilidade era tal e tanta que os outros tripulantes se tornaram desnecessários, tanto podiam ser isso ou aquilo, entender ou não de qualquer item de navegação. Sozinho, o piloto pensava por todos, agia por todos e dava glória a todos os que embarcavam com ele.
Eis senão quando, como acontecia nos textos do século passado, o melhor piloto da história foi escolhido para pilotar um gigantesco aparelho de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, com capacidade para 170 milhões de passageiros, sendo 160 milhões na terceira classe, também conhecida como ""classe econômica", porque não tinha qualquer tipo de economia; 9.999.900 passageiros na classe executiva -pois executavam a difícil arte de viver bem a custo módico- e cem potentados que viajavam na primeira classe, com direito a champanha, caviar, Feiticeira, Vera Fischer e Luma de Oliveira como benevolentes comissárias de bordo.
Para dirigir aeronave tão completa e complexa, que, apesar de tudo, ele considerava fácil de dirigir, o piloto exigiu medidas provisórias que logo se tornaram permanentes: a garantia de ficar no comando o maior tempo possível e o direito de anular qualquer tentativa de substituição, a não ser ele próprio substituindo-se a si mesmo.
O pesado paquiderme estava no ar porque já levantara vôo 500 anos atrás. Apoderando-se dos controles, o maior piloto do mundo tratou de melhorar o conforto a bordo. Providenciou recursos extraordinários para a primeira classe, fazendo um seguro especial para alguns dos passageiros mais importantes, que passaram a contar com um patrimônio de reserva em bancos espalhados ao longo do Caribe.
Para eles, foram importados poltronas especiais e banheiros tais que nem os jatinhos dos potentados árabes tinham iguais, além de suculentas atrações extras, como uma roleta em que podiam ganhar fabulosas quantias com direito a juros cada vez mais compensadores.
Tudo ia bem. O olhar vigilante do piloto, além de olhar o infinito, olhava também os mostradores do painel que informavam as excelentes condições de vôo. Bem verdade que, na traseira do colossal aparelho, havia descontentamento, gente disputando lugar, porque muitos não tinham espaço para ficar. Formaram o Movimento dos Sem-Lugar (MSL), que promovia revoltas e se apoderava de lugares que os baderneiros consideravam vazios.
Mas o piloto sorria, como sorriu o Boca Larga naquele filme de Billy Wilder, quando soube que a namorada conquistada não era mulher, mas homem: nada é perfeito neste mundo.
De repente, o piloto foi surpreendido por uma insignificância de que nem suspeitava. Os reservatórios de combustível estavam nas últimas. Não haveria energia para manter o paquiderme voando. Preocupado em atender com conforto e segurança aos cem passageiros da primeira classe, ele se esquecera de verificar se o avião estava abastecido para a viagem.
Não deixou faltar champanha nem caviar, mas achou que combustível era coisa de pobre, de gente atrasada. Os tanques estavam nos limites mais baixos.
Era, sem dúvida, o melhor piloto do mundo. Na emergência. Mas, sem tirar os olhos do infinito, ele pediu que os demais tripulantes, que o ajudavam no vôo e que sempre faziam o que ele queria, bolassem um plano para salvar quem merecia ser salvo. Ficava difícil partir o avião ao meio, mas não custava tentar, mantendo a primeira classe no ar e deixando o resto cair onde caísse.
No momento, está estudando um jeito de realizar a proeza, salvando uns e desgraçando a todos. Os filósofos já prepararam uma desculpa: o piloto pode tudo, menos revogar a lei da gravidade.



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