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CARLOS HEITOR CONY
O melhor piloto do mundo e a falta de combustível
Nunca houve melhor piloto na história. O consenso
formou-se dentro e fora da companhia aérea: desde Ícaro, Leonardo da Vinci, Santos Dumont e
John Wayne -aquele do filme
""Um Fio de Esperança", em que
salva 1 milhão de passageiros pilotando um avião que perdera as
duas asas, os quatro motores e os
tanques de combustível. Mesmo
assim, John Wayne pousou são e
salvo ao som de uma trilha sonora que fez sucesso.
O primeiro a acreditar que era
mesmo o melhor foi o próprio.
Achava fácil pilotar qualquer tipo
de avião, que ele chamava de ""aeronave" porque era bem articulado. Um apologista dele garantia
que, à luz da filosofia, na qual era
mestre, somente um piloto estava
capacitado a cruzar os céus em
todas as direções, pois somente ele
sabia onde pousar e fugir das
tempestades.
Era tão bom que, segundo seus
amigos, seria capaz de conduzir o
avião com os olhos fechados, sem
apoio do pessoal da terra, que só
servia para atrapalhar. Ele tinha
os olhos no infinito. Os demais só
enxergavam para trás.
Contavam prodígios a seu respeito. O mais notável deles foi a
façanha de decolar num combalido teco-teco, modelo AC (antes de
Cristo) e, durante o vôo, ter transformado o decadente aparelhinho num possante supersônico,
capaz de chegar às estrelas.
Sua infalibilidade era tal e tanta que os outros tripulantes se tornaram desnecessários, tanto podiam ser isso ou aquilo, entender
ou não de qualquer item de navegação. Sozinho, o piloto pensava
por todos, agia por todos e dava
glória a todos os que embarcavam com ele.
Eis senão quando, como acontecia nos textos do século passado, o
melhor piloto da história foi escolhido para pilotar um gigantesco
aparelho de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, com capacidade para 170 milhões de passageiros, sendo 160 milhões na terceira classe, também conhecida
como ""classe econômica", porque
não tinha qualquer tipo de economia; 9.999.900 passageiros na
classe executiva -pois executavam a difícil arte de viver bem a
custo módico- e cem potentados
que viajavam na primeira classe,
com direito a champanha, caviar,
Feiticeira, Vera Fischer e Luma
de Oliveira como benevolentes comissárias de bordo.
Para dirigir aeronave tão completa e complexa, que, apesar de
tudo, ele considerava fácil de dirigir, o piloto exigiu medidas provisórias que logo se tornaram permanentes: a garantia de ficar no
comando o maior tempo possível
e o direito de anular qualquer
tentativa de substituição, a não
ser ele próprio substituindo-se a si
mesmo.
O pesado paquiderme estava no
ar porque já levantara vôo 500
anos atrás. Apoderando-se dos
controles, o maior piloto do mundo tratou de melhorar o conforto
a bordo. Providenciou recursos
extraordinários para a primeira
classe, fazendo um seguro especial para alguns dos passageiros
mais importantes, que passaram
a contar com um patrimônio de
reserva em bancos espalhados ao
longo do Caribe.
Para eles, foram importados
poltronas especiais e banheiros
tais que nem os jatinhos dos potentados árabes tinham iguais,
além de suculentas atrações extras, como uma roleta em que podiam ganhar fabulosas quantias
com direito a juros cada vez mais
compensadores.
Tudo ia bem. O olhar vigilante
do piloto, além de olhar o infinito,
olhava também os mostradores
do painel que informavam as excelentes condições de vôo. Bem
verdade que, na traseira do colossal aparelho, havia descontentamento, gente disputando lugar,
porque muitos não tinham espaço para ficar. Formaram o Movimento dos Sem-Lugar (MSL), que
promovia revoltas e se apoderava
de lugares que os baderneiros
consideravam vazios.
Mas o piloto sorria, como sorriu
o Boca Larga naquele filme de
Billy Wilder, quando soube que a
namorada conquistada não era
mulher, mas homem: nada é perfeito neste mundo.
De repente, o piloto foi surpreendido por uma insignificância de que nem suspeitava. Os reservatórios de combustível estavam nas últimas. Não haveria
energia para manter o paquiderme voando. Preocupado em atender com conforto e segurança aos
cem passageiros da primeira classe, ele se esquecera de verificar se
o avião estava abastecido para a
viagem.
Não deixou faltar champanha
nem caviar, mas achou que combustível era coisa de pobre, de
gente atrasada. Os tanques estavam nos limites mais baixos.
Era, sem dúvida, o melhor piloto do mundo. Na emergência.
Mas, sem tirar os olhos do infinito, ele pediu que os demais tripulantes, que o ajudavam no vôo e
que sempre faziam o que ele queria, bolassem um plano para salvar quem merecia ser salvo. Ficava difícil partir o avião ao meio,
mas não custava tentar, mantendo a primeira classe no ar e deixando o resto cair onde caísse.
No momento, está estudando
um jeito de realizar a proeza, salvando uns e desgraçando a todos.
Os filósofos já prepararam uma
desculpa: o piloto pode tudo, menos revogar a lei da gravidade.
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