São Paulo, segunda, 25 de maio de 1998

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Reflexões sobre o cachorro que mordeu Suplicy

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Dizem os manuais de jornalismo: "se um cachorro morder um homem, isso não é notícia. Se um homem morder um cachorro", acrescentam, "isso sim é notícia".
O que sabem da vida os manuais? Tanto o homem, Eduardo Suplicy, como o cachorro situam-se dentro de um contexto político e, não importa quem morda quem, sempre será notícia.
José Silveira, o secretário de redação gaúcho, costumava contar uma história sobre uma manifestação de esquerda na Bahia, durante a guerra. A polícia baixou o pau, ferindo um militante. Manchete do jornal comunista: "Zeca Patriota espancado a mando de Truman".
Se aplicássemos a mesma lógica ao episódio de Brasília, produziríamos algo assim: "Suplicy mordido por cachorro do PT no auge da luta interna".
Suplicy para mim, é bom avisar, é um herói. Está sempre nas lutas mais justas, é solidário com os mais fracos e se um dia tivesse que deixar alguém tomando conta de tudo o que tenho não hesitaria em deixar nas mãos do senador paulista.
Além disso, Suplicy é um cinquentão que envelhece mantendo a forma física, como esses coronéis que a Nasa escolhe para a conquista da Lua ou uma simples viagem pelo espaço. Suplicy poderia ser o primeiro brasileiro a ir à Lua, embora essas escolhas não sejam feitas por voto direto.
O cachorro que mordeu Suplicy não é um fato isolado. Outro cachorro tentou morder o jogador Denilson em Teresópolis e foi fotografado atacando o pé esquerdo do atacante, um bife de milhões de dólares. Mas o cachorro de Teresópolis estava apenas se lançando, como uma modelo que desfila em escola de samba. Ficou na performance para as câmeras.
O cachorro que mordeu Suplicy foi criado num clima de classe contra classe, é um cachorro consequente, para usar a linguagem dos nossos revolucionários. Acontece que sua educação política se limita aos sentidos. Não pode captar o fato subjetivo essencial na personalidade de Suplicy -o abandono da perspectiva dos milionários paulistas para se tornar um intelectual orgânico da classe operária.
Cachorro orgânico da classe operária, portanto, não reconhece o intelectual orgânico porque é movido por cheiros, consistência da carne, adequação de tecidos dilacerando-se entre seus dentes.
A extrema direita, por meio do deputado Jair Bolsonaro, iludiu-se ao lançar a idéia de condecorar o cachorro que mordeu Suplicy. Não é um cachorro de direita, pelo contrário, é um trânsfuga. Há muito tempo se integrou ao governo popular e democrático de Brasília, esqueceu todos os seus instintos capitalistas e, na verdade, baba pela ditadura do proletariado.
O problema é que o cachorro não reconheceu Suplicy e teoricamente pode se agarrar aos fundilhos de outros intelectuais orgânicos, pois adora microfibra e fez um curso para conhecer a matéria prima importada que está arruinando nossa indústria têxtil.
Avisos não faltaram. As roupas de cannabis sativa têm sido apreendidas com regularidade e ai de quem vestir um terno de cânhamo numa manifestação dessas. De que valem avisos quando se referem a maconheiros e cabeludos? Pedi em vão que fosse revista a relação com a polícia de Brasília.
Alguns deputados do PT sequer quiseram ouvir. A contrário de Blanche Dubois, a personagem de "Um Bonde Chamado Desejo ", o PT não está acostumado a receber ajuda de estranhos.
Olhem que não era aviso objetivo, por exemplo, uma implicância com o bigode do governador. O Planet Hemp passou uma semana na cadeia e o chefe da polícia, num diálogo com o deputado João Paulo, afirmou claramente que era ele quem dava as cartas.
Portanto, o cachorro que mordeu Suplicy não é um fenômeno da natureza, um raio em céu azul. É apenas um desses equívocos que se vão gestando nas dobras da indiferença, no oba-oba dos cartazes anunciando uma revolução que começa em Brasília -artificial como os lagos e jardins.
Só a polícia é verdadeira. E o cachorro que mordeu Suplicy. A polícia, na sua fúria provinciana contra tudo o que se move; o cachorro, na incapacidade instintiva de farejar senadores de esquerda.
Talvez estejamos voltando ao tempo das fábulas, onde tudo se dizia por meio dos animais. Vamos levar algum tempo para encontrar a moral dessa história, do cachorro se agarrando à perna do Suplicy.
O PT governou por quatro anos a capital do país. Poderia ter criado uma nova visão de polícia, suprimido o cachorro na mediação das questões políticas, desenvolvido um método civilizado de neutralizar manifestações violentas.
Dirão: nos EUA usam cachorro, na Alemanha usam cachorro, é assim no Primeiro Mundo. Não deixa de ser uma lástima. A humanidade chegou a um ponto em que pode dispensar as armas químicas, os animais, as minas antipessoais. Tanta coisa mudou, quase não acredito no que vejo no gramado diante do Congresso.
Como explicar que a violência permaneça, quando já existem condições históricas para outras soluções? Freud explica, pelo menos parcialmente. Quando os homens começarem a morder os cachorros, não culpem os manuais de jornalismo. Estava escrito.



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