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Reflexões sobre o cachorro que mordeu Suplicy
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Dizem os manuais de jornalismo: "se um cachorro morder
um homem, isso não é notícia.
Se um homem morder um cachorro", acrescentam, "isso sim
é notícia".
O que sabem da vida os manuais? Tanto o homem, Eduardo Suplicy, como o cachorro situam-se dentro de um contexto político e, não importa
quem morda quem, sempre será notícia.
José Silveira, o secretário de
redação gaúcho, costumava
contar uma história sobre uma
manifestação de esquerda na
Bahia, durante a guerra. A polícia baixou o pau, ferindo um
militante. Manchete do jornal
comunista: "Zeca Patriota espancado a mando de Truman".
Se aplicássemos a mesma lógica ao episódio de Brasília,
produziríamos algo assim:
"Suplicy mordido por cachorro
do PT no auge da luta interna".
Suplicy para mim, é bom avisar, é um herói. Está sempre
nas lutas mais justas, é solidário com os mais fracos e se um
dia tivesse que deixar alguém
tomando conta de tudo o que
tenho não hesitaria em deixar
nas mãos do senador paulista.
Além disso, Suplicy é um cinquentão que envelhece mantendo a forma física, como esses coronéis que a Nasa escolhe
para a conquista da Lua ou
uma simples viagem pelo espaço. Suplicy poderia ser o primeiro brasileiro a ir à Lua, embora essas escolhas não sejam
feitas por voto direto.
O cachorro que mordeu Suplicy não é um fato isolado.
Outro cachorro tentou morder
o jogador Denilson em Teresópolis e foi fotografado atacando o pé esquerdo do atacante,
um bife de milhões de dólares.
Mas o cachorro de Teresópolis
estava apenas se lançando, como uma modelo que desfila em
escola de samba. Ficou na performance para as câmeras.
O cachorro que mordeu Suplicy foi criado num clima de
classe contra classe, é um cachorro consequente, para usar
a linguagem dos nossos revolucionários. Acontece que sua
educação política se limita aos
sentidos. Não pode captar o fato subjetivo essencial na personalidade de Suplicy -o abandono da perspectiva dos milionários paulistas para se tornar
um intelectual orgânico da
classe operária.
Cachorro orgânico da classe
operária, portanto, não reconhece o intelectual orgânico
porque é movido por cheiros,
consistência da carne, adequação de tecidos dilacerando-se
entre seus dentes.
A extrema direita, por meio
do deputado Jair Bolsonaro,
iludiu-se ao lançar a idéia de
condecorar o cachorro que
mordeu Suplicy. Não é um cachorro de direita, pelo contrário, é um trânsfuga. Há muito
tempo se integrou ao governo
popular e democrático de Brasília, esqueceu todos os seus
instintos capitalistas e, na verdade, baba pela ditadura do
proletariado.
O problema é que o cachorro
não reconheceu Suplicy e teoricamente pode se agarrar aos
fundilhos de outros intelectuais orgânicos, pois adora microfibra e fez um curso para
conhecer a matéria prima importada que está arruinando
nossa indústria têxtil.
Avisos não faltaram. As roupas de cannabis sativa têm sido apreendidas com regularidade e ai de quem vestir um
terno de cânhamo numa manifestação dessas. De que valem avisos quando se referem a
maconheiros e cabeludos? Pedi
em vão que fosse revista a relação com a polícia de Brasília.
Alguns deputados do PT sequer quiseram ouvir. A contrário de Blanche Dubois, a personagem de "Um Bonde Chamado Desejo ", o PT não está
acostumado a receber ajuda de
estranhos.
Olhem que não era aviso objetivo, por exemplo, uma implicância com o bigode do governador. O Planet Hemp passou uma semana na cadeia e o
chefe da polícia, num diálogo
com o deputado João Paulo,
afirmou claramente que era
ele quem dava as cartas.
Portanto, o cachorro que
mordeu Suplicy não é um fenômeno da natureza, um raio em
céu azul. É apenas um desses
equívocos que se vão gestando
nas dobras da indiferença, no
oba-oba dos cartazes anunciando uma revolução que começa em Brasília -artificial
como os lagos e jardins.
Só a polícia é verdadeira. E o
cachorro que mordeu Suplicy.
A polícia, na sua fúria provinciana contra tudo o que se move; o cachorro, na incapacidade instintiva de farejar senadores de esquerda.
Talvez estejamos voltando
ao tempo das fábulas, onde tudo se dizia por meio dos animais. Vamos levar algum tempo para encontrar a moral dessa história, do cachorro se
agarrando à perna do Suplicy.
O PT governou por quatro
anos a capital do país. Poderia
ter criado uma nova visão de
polícia, suprimido o cachorro
na mediação das questões políticas, desenvolvido um método civilizado de neutralizar
manifestações violentas.
Dirão: nos EUA usam cachorro, na Alemanha usam cachorro, é assim no Primeiro
Mundo. Não deixa de ser uma
lástima. A humanidade chegou a um ponto em que pode
dispensar as armas químicas,
os animais, as minas antipessoais. Tanta coisa mudou,
quase não acredito no que vejo
no gramado diante do Congresso.
Como explicar que a violência permaneça, quando já
existem condições históricas
para outras soluções? Freud
explica, pelo menos parcialmente. Quando os homens começarem a morder os cachorros, não culpem os manuais de
jornalismo. Estava escrito.
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