São Paulo, quinta, 25 de junho de 1998

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Anne-Sophie Mutter traça para si destino maior

REGINA PORTO
especial para a Folha

Poucos músicos da jovem geração farão tanto pelo violino quanto Anne-Sophie Mutter, o prodígio que Karajan quis ouvir de perto quando ela tinha apenas 13 anos. Hoje, aos 34, ela é a expressão do virtuosismo, mas sua maturidade foi muito além do caráter espetacular e exibicionista do instrumento: Mutter parece pôr em risco a própria vida quando toca.
De Witold Lutoslawski, no passado recente, Krzystof Penderecki, no presente, a Pierre Boulez, no futuro breve, Anne-Sophie é a intérprete que mais tem inspirado compositores contemporâneos em obras para violino.
Penderecki escreveu seu "Segundo Concerto para Violino", concluído em Cracóvia, em 95, com a solista alemã em mente (duas décadas antes, escrevera um primeiro título para Isaac Stern).
A obra -estreada por ela com a Gewandhaus de Leipzig e eleita para integrar o selo de centenário da Deutsche Grammophon - vem a disco em nova versão: Mutter à frente da Sinfônica de Londres, com direção do compositor.
Trata-se de uma espécie de "segunda estréia": a colaboração íntima entre o autor e sua intérprete preferida resulta num mergulho mais ousado no sentido último e primeiro da obra, subtitulada "Metamorphosen". Ainda que a partitura mantenha-se intacta depois dessa gravação, muito de seu conteúdo musical foi revisto a partir desse encontro. O registro em disco é o testemunho admirável de uma daquelas raras performances em que obra, autor e solista experimentam -e definem- um instante único em música.
O respeito mútuo nasceu do primeiro contato entre ambos, em 88, quando Penderecki (naqueles anos dedicado à regência) dirigiu Mutter no "Primeiro Concerto" de Prokofiev.
Não sem razão, Mutter hoje compara o multifacetado Penderecki a um Picasso -artista de sucessivas fases, que ao longo dos anos modulou entre o vanguardismo e a tradição, o engajamento político e a profissão de fé, o radicalismo e o senso de comunicabilidade. Mais que somar, sua música hoje equilibra as experiências de uma escrita que já foi microtonal, serialista, neo-romântica.
Se muitos de seus títulos já são considerados clássicos da modernidade, hoje, diante dos padrões ocidentais, o compositor faz uma curva histórica e geográfica. Explica-se: Krzystof Penderecki é um músico polonês nascido em 1933 e, antes de representar a vanguarda européia, representa o pensamento de uma geração de artistas que se fez sob os duros anos do Leste Europeu. Tornou-se cúmplice de compositores que, ao contrário dele mesmo, mantiveram-se obscuros em meio a trevas políticas e estéticas.
Que o violinista Gidon Kremer entenda a música de Alfred Schnittke ou que o jovem Maxim Vengerov seja o maior intérprete de um concerto de Shostakovich, é de se entender: todos viveram o regime soviético.
Surpreendentemente é Anne-Sophie Mutter assumir o papel de protagonista de uma peça de Krzystof Penderecki, apreender a fundo seus códigos e "trazê-la ao mundo" (na sua própria expressão) com voz verdadeira.
"Metamorphosen" é um concerto em um único movimento (um só fôlego) e seis seções (seis respirações), febril e delirante. O continuum explosivo, formado a partir de uma célula lenta e grave, desenvolve-se em ostinati, com fluxo e refluxo da parte-solista.
Não há tonalidade, mas um centro de convergência une os contrastes. Penderecki é mestre dos timbres -seja no uníssono, na coreografia orquestral ou no contraponto delicado de sinos e celesta (recurso frequente na nova música do Leste, expressão de liberdade religiosa). Texturas camerísticas, sinfônicas e mesmo microscópicas, à maneira da música eletrônica, integram solista e conjunto em uma só trama.
O violino é levado a extremos; Mutter, co-partícipe de uma cantilena pesarosa, vai ao avesso do violino. Seu engajamento com a música transcende o compromisso da artista com a arte de seu tempo. E vem coincidir com um momento central de sua vida, de conquista da maturidade, ainda que pese aí sua tragédia pessoal (a morte recente do marido).
Para a artista, "Metamorphosen" foi um "desafio físico e mental" -e isso diz tudo. Daí a leveza com que discorre pela abstrata "Segunda Sonata" de Bartók (também no disco, como um número extra), que Mutter apresenta com o pianista Lambert Orkis -parceiro em outro projeto vultuoso: a integral das "Sonatas para Violino" de Beethoven, levada pelos dois a turnê mundial durante todo este ano.
Anne-Sophie Mutter -cuja trajetória foi sempre tão cercada de comentários-, ao assumir o repertório mais alto, lança-se com audácia ao futuro: a menina-prodígio deu lugar a uma artista consciente, que cumpre agora sua vocação para a grande música e traça para si mesma um destino maior.

Disco: Anne-Sophie Mutter - Penderecki Obra: Concerto para Violino nš 2 Metamorphosen Lançamento: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 25, em média


Regina Porto é editora de música da revista "Bravo!"



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