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Anne-Sophie Mutter traça para si destino maior
REGINA PORTO
especial para a Folha
Poucos músicos da jovem geração farão tanto pelo violino quanto Anne-Sophie Mutter, o prodígio que Karajan quis ouvir de perto quando ela tinha apenas 13
anos. Hoje, aos 34, ela é a expressão do virtuosismo, mas sua maturidade foi muito além do caráter
espetacular e exibicionista do instrumento: Mutter parece pôr em
risco a própria vida quando toca.
De Witold Lutoslawski, no passado recente, Krzystof Penderecki, no presente, a Pierre Boulez,
no futuro breve, Anne-Sophie é a
intérprete que mais tem inspirado
compositores contemporâneos
em obras para violino.
Penderecki escreveu seu "Segundo Concerto para Violino",
concluído em Cracóvia, em 95,
com a solista alemã em mente
(duas décadas antes, escrevera um
primeiro título para Isaac Stern).
A obra -estreada por ela com a
Gewandhaus de Leipzig e eleita
para integrar o selo de centenário
da Deutsche Grammophon -
vem a disco em nova versão: Mutter à frente da Sinfônica de Londres, com direção do compositor.
Trata-se de uma espécie de "segunda estréia": a colaboração íntima entre o autor e sua intérprete
preferida resulta num mergulho
mais ousado no sentido último e
primeiro da obra, subtitulada
"Metamorphosen". Ainda que a
partitura mantenha-se intacta depois dessa gravação, muito de seu
conteúdo musical foi revisto a
partir desse encontro. O registro
em disco é o testemunho admirável de uma daquelas raras performances em que obra, autor e solista experimentam -e definem-
um instante único em música.
O respeito mútuo nasceu do primeiro contato entre ambos, em
88, quando Penderecki (naqueles
anos dedicado à regência) dirigiu
Mutter no "Primeiro Concerto"
de Prokofiev.
Não sem razão, Mutter hoje
compara o multifacetado Penderecki a um Picasso -artista de sucessivas fases, que ao longo dos
anos modulou entre o vanguardismo e a tradição, o engajamento
político e a profissão de fé, o radicalismo e o senso de comunicabilidade. Mais que somar, sua música hoje equilibra as experiências
de uma escrita que já foi microtonal, serialista, neo-romântica.
Se muitos de seus títulos já são
considerados clássicos da modernidade, hoje, diante dos padrões
ocidentais, o compositor faz uma
curva histórica e geográfica. Explica-se: Krzystof Penderecki é um
músico polonês nascido em 1933
e, antes de representar a vanguarda européia, representa o pensamento de uma geração de artistas
que se fez sob os duros anos do
Leste Europeu. Tornou-se cúmplice de compositores que, ao contrário dele mesmo, mantiveram-se obscuros em meio a trevas
políticas e estéticas.
Que o violinista Gidon Kremer
entenda a música de Alfred
Schnittke ou que o jovem Maxim
Vengerov seja o maior intérprete
de um concerto de Shostakovich, é
de se entender: todos viveram o
regime soviético.
Surpreendentemente é Anne-Sophie Mutter assumir o papel
de protagonista de uma peça de
Krzystof Penderecki, apreender a
fundo seus códigos e "trazê-la ao
mundo" (na sua própria expressão) com voz verdadeira.
"Metamorphosen" é um concerto em um único movimento
(um só fôlego) e seis seções (seis
respirações), febril e delirante. O
continuum explosivo, formado a
partir de uma célula lenta e grave,
desenvolve-se em ostinati, com
fluxo e refluxo da parte-solista.
Não há tonalidade, mas um centro de convergência une os contrastes. Penderecki é mestre dos
timbres -seja no uníssono, na
coreografia orquestral ou no contraponto delicado de sinos e celesta (recurso frequente na nova música do Leste, expressão de liberdade religiosa). Texturas camerísticas, sinfônicas e mesmo microscópicas, à maneira da música eletrônica, integram solista e conjunto em uma só trama.
O violino é levado a extremos;
Mutter, co-partícipe de uma cantilena pesarosa, vai ao avesso do
violino. Seu engajamento com a
música transcende o compromisso da artista com a arte de seu tempo. E vem coincidir com um momento central de sua vida, de conquista da maturidade, ainda que
pese aí sua tragédia pessoal (a
morte recente do marido).
Para a artista, "Metamorphosen" foi um "desafio físico e
mental" -e isso diz tudo. Daí a
leveza com que discorre pela abstrata "Segunda Sonata" de Bartók (também no disco, como um
número extra), que Mutter apresenta com o pianista Lambert Orkis -parceiro em outro projeto
vultuoso: a integral das "Sonatas
para Violino" de Beethoven, levada pelos dois a turnê mundial durante todo este ano.
Anne-Sophie Mutter -cuja trajetória foi sempre tão cercada de
comentários-, ao assumir o repertório mais alto, lança-se com
audácia ao futuro: a menina-prodígio deu lugar a uma artista consciente, que cumpre agora sua vocação para a grande música e traça
para si mesma um destino maior.
Disco: Anne-Sophie Mutter - Penderecki
Obra: Concerto para Violino nš 2
Metamorphosen
Lançamento: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 25, em média
Regina Porto é editora de música da revista
"Bravo!"
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