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CARLOS HEITOR CONY
Ensaio de fabulação do homem sem fábula/B>
Pretende-se colocar o homem
no centro da história. Mas que
espécie de homem? Cada época
teve um a seu agrado. O religioso, na Idade Média; o social, no
Século 19; o consumidor, neste
século. Em linhas gerais, o homem econômico, de Karl Marx
para cá.
E houve o homem moral da
Antiguidade clássica. E há até
o homem-homem, despido de
rótulos, quase uma abstração.
Esse tipo de homem abastece
principalmente o humanismo:
o tempo e o meio podem condicioná-lo, influí-lo, marcá-lo em
sua maneira, mas nunca em
sua essência. Oprimido ou
opressor, estúpido ou gênio -
os acidentes e incidentes servirão apenas para diferenciá-lo
num espaço limitado de tempo
e em medidas exclusivamente
retóricas.
Bom, há ainda o homem eterno. Esse é um absurdo de boa
vontade, uma auto-explicação
tão cômoda quanto pueril.
Mesmo que essa coisa extremamente finita que é o homem
possua alguma faculdade
imortal, ainda assim não será
eterno: foi criado, era nada antes de ser - e nada demais que
volte a ser nada depois de ter sido por algum tempo quase alguma coisa. Ou pouco mais do
que isso, em casos excepcionais.
Dentro de sua extensa temporalidade (ia dizer infinita temporalidade), o homem procura
compreender o mundo e a si
mesmo. Os rótulos fabricados
por ele e para ele vão caindo à
medida que o tempo avança e
ele próprio tenta avançar. Rei
da Criação, Animal Racional,
Bípede Implume: a lista é extensa e, em alguns casos, ridícula. Como o Homo Faber, que
parece nome de lápis e na realidade pode ser aplicado às abelhas e formigas.
Independentemente do grau
de sua compreensão, da inutilidade de sua justificação, há
que viver, e o homem vive: é cidadão, tem o nome no Registro
Civil, na Receita Federal, estuda, casa, contrai dívidas, é imperador, papa, botânico, milionário, soldado, cantor de cabaré, louco de estrada, figurante
do cinema nacional, empurrador de carro alegórico no desfile da Marquês de Sapucaí.
Entra então um filósofo, pega
o louco de estrada ou o empurrador de carro alegórico e diz:
"Ecce homo!". Eis o homem!
Um romancista acha insuficiente e acrescenta que esse homem é isso ou aquilo, pensa assim ou assado, faz coisas boas
ou más. Não é capaz de definir
uma galinha: diz apenas que a
galinha bota ovo. O político entra na briga e nega o filósofo e o
romancista: diz que aquele
exemplar da espécie humana é
conservador, liberal ou revolucionário.
A moça do "check-in" da
companhia de aviação pergunta se ele quer janela ou corredor. O maître do restaurante,
se ele é fumante ou não.
À margem dessas emocionantes manifestações, tudo leva o
homem à final manifestação,
que é a destruição. Nem assim
se chega a um acordo. Entre um
antropólogo e nega a destruição. Diz que há transformação
e cita aquele ditado que parece
paródia de uma frase do finado
Chacrinha: nada se cria e nada
se destrói.
Uma ova! Podemos retornar
ao rabanete de onde viemos.
Mas, alheia à minha vontade,
há a certeza de que jamais serei
um rabanete. Células do rabanete poderão reviver em mim,
mas o meu gosto, minha miséria e meu pranto jamais reviverão no rabanete. Ou em outro
homem. Daí que, depois de
mim, o dilúvio, o tango argentino e aquele poeta que vive comendo rosas.
De todas as expressões humanas com que se procura explicar ou justificar o homem, a
mais inútil é a arte. O artista é
o que mais se autopromove.
Recrimina no homem de negócios a preocupação com o lucro,
a vantagem controlada todas
as noites pela caixa que registra o dever e haver. Esse tipo de
avaliação, por ser mensurável,
é mais honesto do que a dos artistas em geral, cujos valores
são abstratos, especulativos.
Impossível medi-los. Inútil
classificá-los. Shakespeare passou dois séculos como autor de
circo, Modigliani nunca vendeu um quadro, a maior parte
da obra de Kafka ia ser destruída a pedido dele próprio.
A arte formou respeitável patrimônio com o passar do tempo. Não importa que Homero
tenha sido um conjunto de oito
ou mais desocupados que escreviam epopéias homéricas. O
valor dessas obras subexiste e
para quê? Para reprovar alunos nos bancos escolares, para
servir de epígrafe a autores menores e, vez por outra, entusiasmar um erudito trancado nos
livros e no passado.
Então, há a pergunta que me
vem por e-mail: por que, sabendo disso tudo, você também escreve livros? Resposta: não dou
para vender terrenos, sou preguiçoso e burro, nem para advogado dei. Não escrevo por vocação. Não há vocação para isso, como não há vocação para
ser bandeirinha de futebol.
Pergunte-se a 1 milhão de meninos o que deseja ser. Nenhum
deles dirá: bandeirinha de futebol. A coisa simplesmente
acontece.
Bem: há o esplendor da relva
onde é bom amar, ainda que o
amor seja breve como a glória
da flor. A frase é parecida com
um verso de Wordsworth, mas
é minha mesmo.
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