São Paulo, Sexta-feira, 25 de Junho de 1999
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CARLOS HEITOR CONY
Ensaio de fabulação do homem sem fábula/B>

Pretende-se colocar o homem no centro da história. Mas que espécie de homem? Cada época teve um a seu agrado. O religioso, na Idade Média; o social, no Século 19; o consumidor, neste século. Em linhas gerais, o homem econômico, de Karl Marx para cá.
E houve o homem moral da Antiguidade clássica. E há até o homem-homem, despido de rótulos, quase uma abstração. Esse tipo de homem abastece principalmente o humanismo: o tempo e o meio podem condicioná-lo, influí-lo, marcá-lo em sua maneira, mas nunca em sua essência. Oprimido ou opressor, estúpido ou gênio - os acidentes e incidentes servirão apenas para diferenciá-lo num espaço limitado de tempo e em medidas exclusivamente retóricas.
Bom, há ainda o homem eterno. Esse é um absurdo de boa vontade, uma auto-explicação tão cômoda quanto pueril. Mesmo que essa coisa extremamente finita que é o homem possua alguma faculdade imortal, ainda assim não será eterno: foi criado, era nada antes de ser - e nada demais que volte a ser nada depois de ter sido por algum tempo quase alguma coisa. Ou pouco mais do que isso, em casos excepcionais.
Dentro de sua extensa temporalidade (ia dizer infinita temporalidade), o homem procura compreender o mundo e a si mesmo. Os rótulos fabricados por ele e para ele vão caindo à medida que o tempo avança e ele próprio tenta avançar. Rei da Criação, Animal Racional, Bípede Implume: a lista é extensa e, em alguns casos, ridícula. Como o Homo Faber, que parece nome de lápis e na realidade pode ser aplicado às abelhas e formigas.
Independentemente do grau de sua compreensão, da inutilidade de sua justificação, há que viver, e o homem vive: é cidadão, tem o nome no Registro Civil, na Receita Federal, estuda, casa, contrai dívidas, é imperador, papa, botânico, milionário, soldado, cantor de cabaré, louco de estrada, figurante do cinema nacional, empurrador de carro alegórico no desfile da Marquês de Sapucaí.
Entra então um filósofo, pega o louco de estrada ou o empurrador de carro alegórico e diz: "Ecce homo!". Eis o homem! Um romancista acha insuficiente e acrescenta que esse homem é isso ou aquilo, pensa assim ou assado, faz coisas boas ou más. Não é capaz de definir uma galinha: diz apenas que a galinha bota ovo. O político entra na briga e nega o filósofo e o romancista: diz que aquele exemplar da espécie humana é conservador, liberal ou revolucionário.
A moça do "check-in" da companhia de aviação pergunta se ele quer janela ou corredor. O maître do restaurante, se ele é fumante ou não.
À margem dessas emocionantes manifestações, tudo leva o homem à final manifestação, que é a destruição. Nem assim se chega a um acordo. Entre um antropólogo e nega a destruição. Diz que há transformação e cita aquele ditado que parece paródia de uma frase do finado Chacrinha: nada se cria e nada se destrói.
Uma ova! Podemos retornar ao rabanete de onde viemos. Mas, alheia à minha vontade, há a certeza de que jamais serei um rabanete. Células do rabanete poderão reviver em mim, mas o meu gosto, minha miséria e meu pranto jamais reviverão no rabanete. Ou em outro homem. Daí que, depois de mim, o dilúvio, o tango argentino e aquele poeta que vive comendo rosas.
De todas as expressões humanas com que se procura explicar ou justificar o homem, a mais inútil é a arte. O artista é o que mais se autopromove. Recrimina no homem de negócios a preocupação com o lucro, a vantagem controlada todas as noites pela caixa que registra o dever e haver. Esse tipo de avaliação, por ser mensurável, é mais honesto do que a dos artistas em geral, cujos valores são abstratos, especulativos. Impossível medi-los. Inútil classificá-los. Shakespeare passou dois séculos como autor de circo, Modigliani nunca vendeu um quadro, a maior parte da obra de Kafka ia ser destruída a pedido dele próprio.
A arte formou respeitável patrimônio com o passar do tempo. Não importa que Homero tenha sido um conjunto de oito ou mais desocupados que escreviam epopéias homéricas. O valor dessas obras subexiste e para quê? Para reprovar alunos nos bancos escolares, para servir de epígrafe a autores menores e, vez por outra, entusiasmar um erudito trancado nos livros e no passado.
Então, há a pergunta que me vem por e-mail: por que, sabendo disso tudo, você também escreve livros? Resposta: não dou para vender terrenos, sou preguiçoso e burro, nem para advogado dei. Não escrevo por vocação. Não há vocação para isso, como não há vocação para ser bandeirinha de futebol. Pergunte-se a 1 milhão de meninos o que deseja ser. Nenhum deles dirá: bandeirinha de futebol. A coisa simplesmente acontece.
Bem: há o esplendor da relva onde é bom amar, ainda que o amor seja breve como a glória da flor. A frase é parecida com um verso de Wordsworth, mas é minha mesmo.


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