São Paulo, domingo, 25 de julho de 2004

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"FAHRENHEIT 11 DE SETEMBRO"

Filme de Moore une sarcasmo e demagogia

A cruzada anti-Bush de um cineasta justiceiro

JEAN-LUC DOUIN
DO "MONDE"

Depois da Palma de Ouro em Cannes e de um sucesso imenso nos EUA, esse panfleto eficaz mas simplista, e ocasionalmente demagógico, estréia na Europa. Michael Moore usa todos os meios para atingir seu objetivo: impedir a reeleição de George W. Bush.
As discussões giram em torno do "bom lugar"; onde instalar a câmera, onde filmar os depoimentos, onde colocar os microfones? Dúvidas que geram novas questões: até onde se pode ir com o cinema-verdade, até que ponto é possível reconstituir o real? A proliferação de filmes que tomam Bush por tema, ou alvo, introduz uma nova noção, a do "bom momento". Nenhuma eleição presidencial foi precedida por tal acúmulo de obras de propaganda visual que questionam a honestidade de um candidato. Além de prova de uma saudável liberdade de expressão, a situação nos faz refletir sobre o estatuto das acusações.
Com base em seus objetivos declarados, seu tom panfletário, "Fahrenheit 11 de Setembro" [que estréia na próxima sexta no Brasil] surge como filme militante, como filme de propaganda, o que não é uma infâmia, como Dziga Vertov, Mikhail Kalatozóv e Joris Ivens ajudaram a provar. Não importa o que diga o presidente do júri, Quentin Tarantino, a recompensa que o filme obteve no festival de Cannes serve como confirmação desse fato.
Supondo que o prêmio tenha sido conferido por motivos que não tenham conexão com o fato de que Tarantino e Moore trabalham para a mesma produtora (Miramax), afirmar, como o fez o autor de "Kill Bill", que "Fahrenheit..." foi coroado apenas por qualidades cinematográficas é ou prova de incompetência ou mentira deslavada, para não dizer uma escancarada provocação.
O estilo desenvolvido por Moore tem mais a ver com a revista "Mad", com o humorista Karl Zero ou com programas investigativos feitos para a tela pequena do que com o que é esperado de um documentário cinematográfico.
Isso não quer dizer que "Fahrenheit" seja um mau filme, ou que não se possa assistir com prazer a esse trabalho sarcástico. Moore relembra a eleição que conduziu Bush à Presidência, depois de uma contagem de votos problemática, para não dizer fraudulenta. Depois, ele encaixa uma seqüência satírica em que afirma que de janeiro a setembro de 2001, o presidente passou 42% de seu tempo em férias.
Mas a graça logo se esgota. Para introduzir os atentados de 11 de Setembro, Moore emprega a única idéia cinematográfica do filme: um minuto e 10 segundos de tela escura. Só se ouve o som. Tudo que ele relata a seguir é espantoso.
Como o governo Bush criou a ilusão de que o Iraque era a base do terrorismo, como promoveu um clima de medo em todo o país com a cumplicidade cega da mídia, e por que as TVs não mostraram imagens dos caixões de americanos mortos no Oriente Médio.
Isso já havia sido mostrado em "Le Monde selon Bush" [O mundo segundo Bush], de William Karel, entre outros, e de maneira melhor. O que se vê em "Fahrenheit" é como o Estado utiliza as classes populares como bucha de canhão. Fiel a seu gosto pelo confronto, o diretor aborda congressistas para incitá-los a oferecer os nomes de seus filhos para alistamento. O momento espantoso em que se vê Bush atônito em uma cadeira de escola maternal quando lhe informam que um segundo avião atingiu uma torre do World Trade Center adquire toda sua força no filme, um impacto arrasador: uma demonstração visual de que esse homem é incapaz de dirigir os Estados Unidos.
O filme, que Moore designa como "não-ficção", se dirige a uma audiência popular. Uma espécie de Rambo da antiglobalização, ele não poupa recursos para atingir seu objetivo, a começar da idéia de se colocar como justiceiro.
Depois de "A Paixão de Cristo" fundamentalista de Mel Gibson, em que Jesus clama contra seus fanáticos torturadores, e de "Tróia", de Wolfgang Petersen, em que o ataque dos gregos é filmado como se prefigurasse o desembarque aliado na Normandia, "Fahrenheit 11 de Setembro" é um novo sintoma da maneira pela qual o cinema norte-americano pratica o espetáculo como arte da denúncia contra os eixos do mal.


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