São Paulo, sábado, 25 de julho de 2009

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LIVROS

Martínez põe lente em vidas no limbo

"Purgatório" trata de traumas deixados pela ditadura na sociedade argentina

Romance retrata personagem que busca o amante desaparecido por 30 anos e o reencontra sem que tenha envelhecido

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DA ILUSTRADA

Perder um ente querido já é uma tragédia. Não saber como foram seus últimos momentos ou onde está o seu corpo são coisas que geralmente potencializam esta que talvez seja a pior das tristezas humanas.
A ditadura militar (1976-1983) argentina foi pródiga em espalhar essa dor. Segundo estimativas de entidades de defesa dos direitos humanos, o regime provocou o "desaparecimento" de 30 mil pessoas -muitos desses corpos jamais reapareceram.
"Purgatório", mais recente obra de Tomás Eloy Martínez, 75, trata do maior dos traumas da história argentina com uma abordagem ao mesmo tempo política e literária.
O romance acompanha a jovem Emilia Dupuy, filha de um tipo influente na sociedade portenha, cujo marido "desaparece" no meio da repressão. Inconformada com o sumiço do companheiro e a total falta de explicações, ela passa os próximos 30 anos de sua vida buscando-o em várias cidades do mundo, negando-se a acreditar que ele muito provavelmente já estivesse morto.
Um dia, num restaurante em Nova Jersey, onde resolveu radicar-se, o reencontra.
O intrigante é que, enquanto ela é então uma senhora de mais de 60 anos, ele não envelheceu nem sequer um dia. "Quis explorar essa ideia de que a ditadura deixou vidas em suspenso, tanto as dos que foram para o exílio como as dos que tiveram a existência interrompida misteriosamente. Para muitos foi um imenso limbo, ou um purgatório, algo que está entre uma existência prévia e uma póstuma totalmente diferente", disse Martinez em entrevista à Folha, por telefone, de Buenos Aires.
O tema não é nada distante do autor. Exilado durante todo o período militar, ele viveu na Europa e na Venezuela. Quando saiu do país, pensou que seria por poucos meses, mas acabou ficando todo o tempo fora.
"O exílio e o purgatório têm muito em comum. Em ambos a essência é a espera, uma espera que parece infinita, ao mesmo tempo uma espera cheia de esperança", resume.
Emilia é uma mulher ingênua, não percebe o tamanho do drama que vive o país. Apenas se preocupa com a ausência do amado, que vira uma obsessão. Já o pai é uma figura que resume o comportamento de boa parte da sociedade argentina naqueles anos. Sem colocar as próprias mãos no aparelho repressivo, é cúmplice dos militares dando-lhes apoio político e ajudando na manipulação das notícias sobre o governo que saem na mídia.
"A Argentina hoje tem olhado de modo mais crítico para o comportamento da sociedade civil. Até pouco tempo era difícil que se admitisse que a nação tinha fechado os olhos, de certo modo consciente da violência do regime. A imprensa teve muita culpa nisso tudo."
"Purgatório" é mais um romance de Martínez a explorar ficcionalmente a história argentina. Entre seus livros mais importantes estão "Romance de Perón" e "Santa Evita".

Papel de mulher
Para construir Emilia, o autor conta que leu textos de psicologia feminina, para investigar as emoções de mulheres mais velhas. "Quis dar uma alegria para uma solitária de 60 anos. Por que uma mulher mais velha não pode conhecer a felicidade? Porém, para isso, eu precisava saber como é essa solidão. E como ela se sentiria tendo o sonho de toda a vida, o reencontro com o amante perdido na juventude, realizado."
Emilia e seu amante perdido, Simon, são ambos cartógrafos. Martínez explica que optou por dar essa profissão a ambos por conta das metáforas que pode encerrar. "Os mapas constituíam o modo como os antigos tentavam imaginar o mundo. E assim, de algum modo, eles o reconstituíam. Seu trabalho parece com o fazer literário quando criam continentes, riscam fronteiras desconhecidas e definem abismos."


PURGATÓRIO

Autor: Tomás Eloy Martínez
Tradução: Bernardo Ajzenberg
Lançamento: Companhia das Letras
Preço: R$ 42 (247 págs.)


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