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LIVROS
Martínez põe lente em vidas no limbo
"Purgatório" trata de traumas deixados pela ditadura na sociedade argentina
Romance retrata personagem que busca o amante desaparecido por 30 anos e o reencontra sem que tenha envelhecido
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DA ILUSTRADA
Perder um ente querido já é
uma tragédia. Não saber como
foram seus últimos momentos
ou onde está o seu corpo são
coisas que geralmente potencializam esta que talvez seja a
pior das tristezas humanas.
A ditadura militar (1976-1983) argentina foi pródiga em
espalhar essa dor. Segundo estimativas de entidades de defesa dos direitos humanos, o regime provocou o "desaparecimento" de 30 mil pessoas
-muitos desses corpos jamais
reapareceram.
"Purgatório", mais recente
obra de Tomás Eloy Martínez,
75, trata do maior dos traumas
da história argentina com uma
abordagem ao mesmo tempo
política e literária.
O romance acompanha a jovem Emilia Dupuy, filha de um
tipo influente na sociedade
portenha, cujo marido "desaparece" no meio da repressão.
Inconformada com o sumiço
do companheiro e a total falta
de explicações, ela passa os próximos 30 anos de sua vida buscando-o em várias cidades do
mundo, negando-se a acreditar
que ele muito provavelmente já
estivesse morto.
Um dia, num restaurante em
Nova Jersey, onde resolveu radicar-se, o reencontra.
O intrigante é que, enquanto ela é então uma senhora de mais de 60
anos, ele não envelheceu nem
sequer um dia.
"Quis explorar essa ideia de
que a ditadura deixou vidas em
suspenso, tanto as dos que foram para o exílio como as dos
que tiveram a existência interrompida misteriosamente. Para muitos foi um imenso limbo,
ou um purgatório, algo que está
entre uma existência prévia e
uma póstuma totalmente diferente", disse Martinez em entrevista à Folha, por telefone,
de Buenos Aires.
O tema não é nada distante
do autor. Exilado durante todo
o período militar, ele viveu na
Europa e na Venezuela. Quando saiu do país, pensou que seria por poucos meses, mas acabou ficando todo o tempo fora.
"O exílio e o purgatório têm
muito em comum. Em ambos a
essência é a espera, uma espera
que parece infinita, ao mesmo
tempo uma espera cheia de esperança", resume.
Emilia é uma mulher ingênua, não percebe o tamanho do
drama que vive o país. Apenas
se preocupa com a ausência do
amado, que vira uma obsessão.
Já o pai é uma figura que resume o comportamento de boa
parte da sociedade argentina
naqueles anos. Sem colocar as
próprias mãos no aparelho repressivo, é cúmplice dos militares dando-lhes apoio político e
ajudando na manipulação das
notícias sobre o governo que
saem na mídia.
"A Argentina hoje tem olhado de modo mais crítico para o
comportamento da sociedade
civil. Até pouco tempo era difícil que se admitisse que a nação
tinha fechado os olhos, de certo
modo consciente da violência
do regime. A imprensa teve
muita culpa nisso tudo."
"Purgatório" é mais um romance de Martínez a explorar
ficcionalmente a história argentina. Entre seus livros mais
importantes estão "Romance
de Perón" e "Santa Evita".
Papel de mulher
Para construir Emilia, o autor conta que leu textos de psicologia feminina, para investigar as emoções de mulheres
mais velhas. "Quis dar uma alegria para uma solitária de 60
anos. Por que uma mulher mais
velha não pode conhecer a felicidade? Porém, para isso, eu
precisava saber como é essa solidão. E como ela se sentiria
tendo o sonho de toda a vida, o
reencontro com o amante perdido na juventude, realizado."
Emilia e seu amante perdido,
Simon, são ambos cartógrafos.
Martínez explica que optou por
dar essa profissão a ambos por
conta das metáforas que pode
encerrar. "Os mapas constituíam o modo como os antigos
tentavam imaginar o mundo. E
assim, de algum modo, eles o
reconstituíam. Seu trabalho
parece com o fazer literário
quando criam continentes, riscam fronteiras desconhecidas e
definem abismos."
PURGATÓRIO
Autor: Tomás Eloy Martínez
Tradução: Bernardo Ajzenberg
Lançamento: Companhia das Letras
Preço: R$ 42 (247 págs.)
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