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LIVROS/LANÇAMENTOS
"POEIRA"
Em seu terceiro livro, português tensiona biografia e universalidade
Fernando Paixão expressa
a perda de suas vivências
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
O poeta Fernando Paixão
nasceu em Beselga, uma aldeia portuguesa, e com seis anos
veio para o Brasil. Muitos dos
poemas deste livro estão impregnados das suas memórias da infância. Não se trata, porém, de revisitar, de evocar o passado simplesmente. Não há folclore sentimental nesta poesia; nem aquele
espírito de "turismo íntimo" que,
se usado com certa sofisticação,
pode às vezes passar por lírico.
O leitor se depara, antes de tudo,
com certas particularidades de
vocabulário: "lume", "candeia", a
lenha que "arde" é mais comum,
no Brasil, dizer-se "queima". Mas
essas palavras não se destinam a
dar uma "cor local", sua função,
creio, é outra.
Curioso que tenham a ver com a
idéia de fogo. Leitor de Bachelard,
Fernando Paixão já vinha organizando seus livros anteriores ("Fogo dos Rios", editora Brasiliense,
e "25 Azulejos", editora Iluminuras) em torno da "poética dos
quatro elementos" que tanto inspirou o filósofo francês.
E, se o fogo evoca naturalmente
as imagens de lar, de conforto, de
proteção, poderíamos pensar que
o tom lusitano do vocabulário está justamente a remeter o poema
para esse reencontro com o passado, com a casa paterna, com a
aldeia natal.
Aí que as coisas se complicam
um pouco. Falando do fogo, da
água, do ar e da terra, a poesia de
Fernando Paixão procura decididamente um caráter universal, e
mesmo "intemporal". Um rio,
por exemplo, não será o famoso
"rio da minha aldeia" de que fala
Alberto Caeiro, mas algo de mais
abstrato. No poema intitulado "O
Rio sem Nome", o poeta assim se
refere à morte de uma mulher: "a
cabeça/ à beira do rio extremo/ ela
suspirou lentamente/ e calou-se:
lençol na pedra".
Desenvolve-se, assim, um jogo
muito rico neste livro. O material
biográfico, a lembrança pessoal
concreta, está como que em oposição ao imaginário universal,
"elementar", da água, do fogo, do
rio, da chama. Seria uma contradição? De jeito nenhum, a meu
ver. Pois este livro não pretende
recuperar as vivências da aldeia,
mas justamente expressar a perda
dessas vivências; seu desaparecimento, ou melhor, sua transformação -este o título do livro-
em "poeira".
Portugal se vive como uma ausência, seja na figura do pai ("apenas uma notícia de viagem"), seja
na profecia anti-romântica ("o
mar perderá todo o sal"), seja numa ironização do passado ("... os
meninos distraídos/ chacoalhamos os sons/ do pequeno império").
E, se existe uma memória da intimidade, do ensimesmamento
infantil, trata-se de algo sempre
ameaçado, sempre exposto ao risco. Vale citar na íntegra um dos
mais belos poemas do livro: "A
candeia acesa sobre a cômoda/
surpreende a visão/ como o berro
dos cães/ aos ouvidos.// Chamas e
latidos para o alto/ despertam/
um conhecimento miúdo/ e rápido.// Como é grande o mundo...//
Inseguro/ recolho a atenção/ nos
frisos do assoalho limpo.".
Preza-se uma quietude que pode ser a todo momento interrompida; na floresta, "a terra inquieta/
abate a tiro/ o silêncio em volta.".
É como se o poeta, em vez de tentar uma literatura evocativa, "ilusionista", procurasse a todo momento, e paradoxalmente, preservar, "manter a posse" de uma negatividade, de uma ausência.
Negatividade e ausência que
não são simplesmente resultado
de uma perda, mas também resultado de uma depuração, de um
amadurecimento. Nestes poemas
"com sinal de menos", Fernando
Paixão parece viver um momento
de plenitude: "Nenhum sol ausente:/ luz a pino.".
Na dupla negação do primeiro
verso, consegue-se, com grande
pudor, invocar como que uma
presença pura, essencial, o que sobra de todas as perdas. "Tantos
que fui/ ficaram poucos", afirma
o autor, para concluir mais adiante: "nem perceber sei/ este agora/
eu/ de mim (de quem?)/ fixado
contra o rosto.".
Ler os dois livros anteriores de
Fernando Paixão, à luz da realização deste "Poeira", é uma experiência que por si só valeria um
comentário à parte. Impressiona
a fidelidade do poeta a seu imaginário, a ponto de alguns poemas
parecerem uma reelaboração,
uma reescrita de idéias contidas
nas obras anteriores. Mas, aqui,
sente-se uma velatura da voz, um
nuançado, um calor, que tornam
certamente um pouco inadequadas as racionalizações desta resenha. São poemas ao mesmo tempo simples e secretos, a serem lidos com silêncio em volta.
Poeira
Autor: Fernando Paixão
Editora: 34
Quanto: R$ 16 (88 págs.)
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