São Paulo, sábado, 25 de agosto de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"POEIRA"

Em seu terceiro livro, português tensiona biografia e universalidade

Fernando Paixão expressa a perda de suas vivências

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

O poeta Fernando Paixão nasceu em Beselga, uma aldeia portuguesa, e com seis anos veio para o Brasil. Muitos dos poemas deste livro estão impregnados das suas memórias da infância. Não se trata, porém, de revisitar, de evocar o passado simplesmente. Não há folclore sentimental nesta poesia; nem aquele espírito de "turismo íntimo" que, se usado com certa sofisticação, pode às vezes passar por lírico.
O leitor se depara, antes de tudo, com certas particularidades de vocabulário: "lume", "candeia", a lenha que "arde" é mais comum, no Brasil, dizer-se "queima". Mas essas palavras não se destinam a dar uma "cor local", sua função, creio, é outra.
Curioso que tenham a ver com a idéia de fogo. Leitor de Bachelard, Fernando Paixão já vinha organizando seus livros anteriores ("Fogo dos Rios", editora Brasiliense, e "25 Azulejos", editora Iluminuras) em torno da "poética dos quatro elementos" que tanto inspirou o filósofo francês.
E, se o fogo evoca naturalmente as imagens de lar, de conforto, de proteção, poderíamos pensar que o tom lusitano do vocabulário está justamente a remeter o poema para esse reencontro com o passado, com a casa paterna, com a aldeia natal.
Aí que as coisas se complicam um pouco. Falando do fogo, da água, do ar e da terra, a poesia de Fernando Paixão procura decididamente um caráter universal, e mesmo "intemporal". Um rio, por exemplo, não será o famoso "rio da minha aldeia" de que fala Alberto Caeiro, mas algo de mais abstrato. No poema intitulado "O Rio sem Nome", o poeta assim se refere à morte de uma mulher: "a cabeça/ à beira do rio extremo/ ela suspirou lentamente/ e calou-se: lençol na pedra".
Desenvolve-se, assim, um jogo muito rico neste livro. O material biográfico, a lembrança pessoal concreta, está como que em oposição ao imaginário universal, "elementar", da água, do fogo, do rio, da chama. Seria uma contradição? De jeito nenhum, a meu ver. Pois este livro não pretende recuperar as vivências da aldeia, mas justamente expressar a perda dessas vivências; seu desaparecimento, ou melhor, sua transformação -este o título do livro- em "poeira".
Portugal se vive como uma ausência, seja na figura do pai ("apenas uma notícia de viagem"), seja na profecia anti-romântica ("o mar perderá todo o sal"), seja numa ironização do passado ("... os meninos distraídos/ chacoalhamos os sons/ do pequeno império").
E, se existe uma memória da intimidade, do ensimesmamento infantil, trata-se de algo sempre ameaçado, sempre exposto ao risco. Vale citar na íntegra um dos mais belos poemas do livro: "A candeia acesa sobre a cômoda/ surpreende a visão/ como o berro dos cães/ aos ouvidos.// Chamas e latidos para o alto/ despertam/ um conhecimento miúdo/ e rápido.// Como é grande o mundo...// Inseguro/ recolho a atenção/ nos frisos do assoalho limpo.".
Preza-se uma quietude que pode ser a todo momento interrompida; na floresta, "a terra inquieta/ abate a tiro/ o silêncio em volta.". É como se o poeta, em vez de tentar uma literatura evocativa, "ilusionista", procurasse a todo momento, e paradoxalmente, preservar, "manter a posse" de uma negatividade, de uma ausência.
Negatividade e ausência que não são simplesmente resultado de uma perda, mas também resultado de uma depuração, de um amadurecimento. Nestes poemas "com sinal de menos", Fernando Paixão parece viver um momento de plenitude: "Nenhum sol ausente:/ luz a pino.".
Na dupla negação do primeiro verso, consegue-se, com grande pudor, invocar como que uma presença pura, essencial, o que sobra de todas as perdas. "Tantos que fui/ ficaram poucos", afirma o autor, para concluir mais adiante: "nem perceber sei/ este agora/ eu/ de mim (de quem?)/ fixado contra o rosto.".
Ler os dois livros anteriores de Fernando Paixão, à luz da realização deste "Poeira", é uma experiência que por si só valeria um comentário à parte. Impressiona a fidelidade do poeta a seu imaginário, a ponto de alguns poemas parecerem uma reelaboração, uma reescrita de idéias contidas nas obras anteriores. Mas, aqui, sente-se uma velatura da voz, um nuançado, um calor, que tornam certamente um pouco inadequadas as racionalizações desta resenha. São poemas ao mesmo tempo simples e secretos, a serem lidos com silêncio em volta.

Poeira     
Autor: Fernando Paixão
Editora: 34
Quanto: R$ 16 (88 págs.)



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