São Paulo, Quarta-feira, 25 de Agosto de 1999
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LITERATURA
"Agora entendo melhor os escritores", diz editor da Companhia das Letras, que lança seu 1º livro
Schwarcz faz "quase memórias" de goleiro


MATINAS SUZUKI JR.
da Equipe de Articulistas

Aos poucos, o futebol vem ganhando densidade suficiente para ser reconhecido como um binóculo que aproxima a memória do relato literário.
No caso do primeiro livro do editor Luiz Schwarcz, proprietário da Companhia das Letras, as recordações do filho único que também era goleiro clandestino servem de tiro de meta para se chegar às experiências mais inclusivas (o horror da guerra e a maneira como ela virou a bússola da vida de seus pais, por exemplo).
Na verdade, "Minha Vida de Goleiro" trata de uma "quase memória", pois ela é uma espécie de medo do goleiro diante do desconhecimento do passado do pai (um húngaro que foi jogado do trem que o levaria ao campo de concentração, que fez bicos na Cinecittá, mas que só relatou ao filho a sua passagem pela guerra uma única vez).
A narrativa é curta, bem escrita e flui tão naturalmente entre a recordação pessoal e o que serve como vivência coletiva que o livro é e não é para crianças... e também não é e é para adultos.

Folha - O livro é uma decisão de campeonato entre a sua memória e a quase não-memória de seu pai. Por que ele precisou ser escrito?
Luiz Schwarcz -
A primeira idéia foi escrever um livro sobre meu pai. Eu fui a Budapeste e vi o lugar onde ele morava e imaginei um romance sobre um filho que não sabe a história do pai. No ano passado, em setembro, eu tive uma crise de melancolia e comecei a escrever para os meus filhos a história do meu pai. Eu ia escrevendo e mostrando para a Lili (a historiadora Lilian Moritz Schwarcz, sua mulher e diretora da Companhia das Letrinhas, a divisão infantil da Companhia das Letras) que, no final, achou que cabia na coleção Memória e História.
Quando levei o livro para o meu pai -e antes de ele me dizer o que tinha achado- eu comecei a achar que tinha sido um erro revelar a sua história, que ele me contou uma vez e nunca mais voltou ao assunto. Depois eu vi que a reação dele foi boa, que ele ficou muito emocionado.

Folha - Mas por que tomar justamente a sua vida de goleiro como ponto de partida?
Schwarcz -
Eu não sei, mas quando eu comecei a pensar na minha infância eu me lembrei de estar, sozinho, dentro do nosso apartamento, jogando a bola contra a parede e pulando para defender. O futebol estava no centro da minha infância, eu ia ao Pacaembu todas as quartas, sábados e domingos, e continua no centro da minha vida.

Folha - É muito interessante porque, na Inglaterra, a partir do sucesso do livro "Fever Pitch", de Nick Hornby, floresce uma literatura de memórias infantis e adolescentes desfiadas a partir da experiência com futebol.
Schwarcz -
Eu conheço o Nick Hornby, mas não conheço esse livro, que eu vou procurar ler. Quem ler o meu livro verá que o fato de eu contar para o meu pai que eu era um goleiro clandestino, escondido dele, foi muito importante para a minha vida, foi um gesto de destemor. O futebol, no livro, é a metáfora que une os fatos da minha memória infantil.

Folha - Grandes escritores como o Nabokov e o Camus foram goleiros. Peter Handke escreveu "O Medo do Goleiro Diante do Pênalti", que depois foi filmado pelo Wim Wenders. O Rafael Alberti tem um poema memorável, "Oda a Platko", dedicado ao "osso louro da Hungria" que jogou na Espanha. Por que essa predileção dos literatos pelo goleiro?
Schwarcz -
Eu acho que a solidão do goleiro deve ser o que fascina mais os escritores. De certa forma, você não escolhe, você é escolhido pela solidão e pela posição de goleiro. Eu acabei goleiro porque tive uma infância muito solitária.
O goleiro tem um olhar diferenciado dos outros jogadores e dos torcedores, porque ele é o único que participa e não participa do jogo ao mesmo tempo. O curioso é que um dos escritores que mais marcou a minha vida foi justamente o Camus de "O Estrangeiro". E eu só vim a saber muito depois que ele tinha sido goleiro.

Folha - Quais são os grandes goleiros que você viu jogar?
Schwarcz -
Eu cheguei a ver o Gilmar quando eu era pequeno. Mas o goleiro que mais me marcou foi o Cejas, que jogou no Santos. Ele era um goleiro que tinha uma certa graça. Era grande, elegante, tinha uma certa ironia no olhar. Essa ironia chegava ao ponto de ele não se exibir, de não valorizar a ponte ou a defesa mais acrobática. O que ficava não era o salto acrobático, mas o tapinha final na bola. Ele era enorme, mas minimalista.

Folha - O goleiro tem a chave do céu ou do inferno. Ele guarda a chamada "linha fatal", a linha da vida ou da morte, da alegria ou da tristeza.
Schwarcz -
O goleiro só aparece em jogo para glória ou para a desgraça. Uma das coisas que marca o goleiro, além da solidão, é a responsabilidade. Ele resolveu assumir toda a responsabilidade.

Folha - Há algum paralelo entre a sua vida de goleiro e a vida de editor?
Schwarcz -
Eu fui jogar futebol por prazer e por alegria, e foi por prazer que eu fui trabalhar com a literatura. Eu sou o único herdeiro dos negócios da minha família, a empresa não tem continuidade sem a minha pessoa, e eu preferi optar pelo meu prazer. Um prazer que eu tinha ao jogar futebol todos os dias.

Folha - Para um editor é muito difícil escrever o seu primeiro livro?
Schwarcz -
Eu fiquei pensando se eu demorei quatro meses para escrever este livro, que foi o tempo que eu levei redigindo, ou se ele levou 21 anos, que é o tempo que eu trabalho com livros, para ser escrito, ou se levou a vida toda para ser escrito. Eu acho que a vontade de escrever estava em mim há muito tempo, mas eu sempre pensava que não tinha talento nem tempo para suplantar a falta de talento.
Agora eu estou vivendo as mesmas angústias que os autores da Companhia da Letras vivem. Estou entendendo melhor os escritores.


Matinas Suzuki Jr. é diretor editorial-adjunto da Abril S/A.


Livro: Minha Vida de Goleiro Autor: Luiz Schwarcz Ilustrações: Maria Eugênia Lançamento: Companhia das Letrinhas Quando: hoje, às 19h Onde: Livraria da Vila (r. Fradique Coutinho, 915, tel. 0/xx/11/814-5811) Quanto: R$ 16,50 (48 págs.)

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