São Paulo, Sábado, 25 de Setembro de 1999
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EXPOSIÇÃO

Mostra reúne as três terras de Glauber Rocha


LÚCIA NAGIB
da Equipe de Articulistas



"Existirá uma síntese dialética entre o capitalismo e o socialismo, estou certo disso." A frase, que hoje soaria corriqueira, foi pronunciada por Glauber Rocha em seu filme-testamento "A Idade da Terra", de 1980.
Caótico, mas cheio de profecias impressionantes como essa, o filme está na origem da concepção da "Trilogia da Terra", exposição sobre o mais famoso cineasta brasileiro, a ser inaugurada, para convidados, no próximo dia 28 de setembro na galeria do Espaço BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), no Rio de Janeiro.
Foi em 1972 que, após uma temporada em Cuba, Glauber propôs a produtores europeus um filme cujo título contivesse a palavra "terra" e que compusesse uma trilogia com "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de 1964, e "Terra em Transe", de 1967.
Como narra Geraldo Mayrink, numa famosa reportagem publicada na revista "Playboy" em outubro de 1980, lançava-se naquele momento a semente de "A Idade da Terra", filme que estaria pronto apenas oito anos mais tarde, depois de enlouquecer produtores, técnicos e atores e, segundo acreditam alguns, contribuir para a morte do próprio Glauber, em 1981.
De fato, talvez nunca como neste filme Glauber estivesse tão obsedado pela questão da terra, não apenas a terra que não possuíam os pobres do Terceiro Mundo, mas o planeta Terra.
"A Idade da Terra" é uma tentativa desesperada e extrema de universalização de fenômenos locais. Salvador, Rio e Brasília, consecutivas capitais do Brasil, se tornam o umbigo do mundo num filme convulso, agressivo, "uma explosão atômica no centro da Terra", como diz um dos personagens.
Para Glauber, não seria apenas o capitalismo que se fundiria ao socialismo, uniformizando o planeta e fazendo surgir a única diferença básica entre os povos: os pobres e os ricos. Haveria também um cristianismo universal, inspirado em Pasolini, que uniria em si todas as religiões, cristãs ou não, e de onde surgiria a possibilidade de um mundo melhor. "Não se pode pensar num só país", diz ainda Glauber em "A Idade da Terra". "Temos que multinacionalizar e internacionalizar o mundo dentro de um regime interdemocrático. Com a grande contribuição do cristianismo e todas as religiões, que são a mesma religião."
Globalista muito antes da globalização, Glauber é, no entanto, antes de tudo, um profundo conhecedor do Brasil, e é a partir dele que tenta compreender o mundo. Sua obra se desenvolve num nítido crescendo, como bem ilustra a trilogia: "Deus e o Diabo na Terra do Sol" trata do camponês nordestino explorado que mata o coronel latifundiário; "Terra em Transe" amplia o problema da miséria brasileira para uma América Latina em confronto com o capital internacional; e "A Idade da Terra" eleva o drama do subdesenvolvimento ao nível planetário, encontrando na unificação religiosa a única possibilidade de democracia.
No entanto, esta "Trilogia da Terra" é apenas o mote para uma mostra de todo o desenvolvimento intelectual de Glauber, desde a infância até sua morte precoce, aos 42 anos, segundo esclarecem os organizadores da exposição: a infatigável Lúcia Rocha, mãe do cineasta, e Eric Hermany, seu dedicado assistente na preservação do espólio no arquivo Tempo Glauber.
Seguindo sua intuição de mãe -e de artista que ela mesma é- , Lúcia Rocha, hoje com 80 anos, coletou cartas, poemas, manuscritos de roteiros, peças, romances, além dos desenhos febrilmente produzidos pelo filho, cujo destino, não fossem esses cuidados, talvez tivesse sido o lixo.
A partir dos anos 60, Lúcia começou a organizar e sistematizar o material que daria origem, em 1987, ao acervo do Tempo Glauber, entidade que hoje dirige e que abriga centenas de documentos preciosos, provenientes não apenas do Brasil, mas dos vários países onde Glauber viveu.
Uma seleção desse material poderá ser vista nas quatro instalações da exposição. A primeira delas, iconográfica, é composta de fotos em ambientação de João Rocha, neto de Lúcia.
A segunda instalação traz documentos raros, como o original do famoso manifesto "Uma Estética da Fome", de 1965, um marco na história do cinema mundial, e de cartas enviadas e recebidas, por exemplo, de Salvador Allende e Orson Welles. Também aqui estarão vários dos famosos desenhos de Glauber, desprezados por ele, mas, felizmente, levados a sério por sua mãe.
Uma terceira instalação multimídia exibirá em monitores de TV excertos dos filmes da trilogia, editados para serem apreciados no tempo da exposição.
Haverá ainda uma quarta instalação virtual, com um banco de dados acessível por terminais de computador, contendo informações biográficas e filmográficas completas. Nesta, o visitante poderá conhecer melhor os personagens glauberianos dispostos em tamanho natural no início da exposição.
Por meio de um programa de computador, o personagem escolhido se apresenta, fala como foi criado e descreve sua trajetória no filme.
A exposição é, portanto, uma amostra significativa do tesouro existente no Tempo Glauber e a comprovação da criatividade inesgotável do universo glauberiano.




Exposição: Trilogia da Terra, mostra sobre a obra de Glauber Rocha
Onde: galeria do Espaço BNDES (av. Chile, 100, centro, Rio de Janeiro)
Quando: abertura será no 28 de setembro, às 18h30; a mostra fica em cartaz até 29 de outubro
Internet: http://www.bndes.gov.br


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