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ARIANO SUASSUNA
Gilberto Freyre e Euclydes da Cunha
ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo
idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de
casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso
e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia
e Licenciado em Artes Ariano Suassuna
O MATUTO E O SERTANEJO
No meu pequeno ensaio
"Teatro, Região e Tradição", escrito em 1962 para o livro
"Gilberto Freyre: sua Ciência,
sua Filosofia, sua Arte", afirmei
que "a maior parcela de influência" que eu tinha recebido do Movimento Regionalista vinha dos
romances nordestinos, cuja aparição ele deflagrou, juntamente
com "A Bagaceira", de José Américo de Almeida. E explicava:
"Muitas coisas, aliás, me impeliram para esse caminho (que me
aproximava principalmente de
José Lins do Rego). Assim, à primeira vista, devo acentuar o fato
de ser filho de família sertaneja,
criado em Fazendas e numa pequena cidade do Sertão paraibano, Taperoá. O acaso também desempenha um papel importante
em nossa formação: meu Pai gostava muito da Literatura popular
nordestina. Leonardo Mota era
seu hóspede de vez em quando, e
ouviam juntos os Cantadores que
o escritor cearense levava a nossa
casa, juntamente com seus livros
e cantigas anotadas. Mal aprendi
a ler, descobri esse material e decorei alguns dos romances, autos
e moralidades que ainda hoje são
meus temas obsessionais em Teatro. Também Monteiro Lobato,
cujos livros infantis foram uma
grande felicidade da minha infância e que procurei depois, decepcionando-me um pouco com suas
limitações, mas que não deixou
de me chamar a atenção para o fato de que era errado repetir servilmente aqui os modelos europeus
de má qualidade. Que salientava
também (como Gilberto Freyre) a
riqueza de nossas folhagens, indicando-as aos artistas como ponto-de-partida para uma Arte nossa. Mas, para mim, o romance
nordestino tinha uma importância toda especial. A revelação que
tive dele, também na infância,
deu-me um caráter de maravilhoso ao cotidiano; ainda mais porque eu conhecia Itabaiana e Pilar
(cidades tão presentes no universo de José Lins do Rego); morava
por ali, eram nomes familiares às
conversas que eu ouvia. Um romance passado naquele lugar
mergulhava de repente em tudo
aquilo que eu conhecia no universo fascinante da Arte, cujo papel
de "solenizar a vida" aqui se tornava efetivo, diante de meus olhos"
(pág. 481/482).
Depois daí, lembrando minhas
primeiras tentativas no campo do
Teatro, anotava eu, na pessoa e na
obra de Gilberto Freyre, alguns
aspectos que me separavam do
Movimento Regionalista:
"Eu descobrira o teatro de Ibsen, numa velha tradução francesa pertencente a um médico inteligente e culto de Taperoá (o Doutor Abdias Campos). Deslumbrado, tentei escrever também uma
peça, logo abandonada exatamente porque o drama urbano
ainda não correspondia a nenhum anseio fundamental meu e
eu sentia algo de falso e mentiroso
no que escrevia, tentando repetir
Ibsen através de seus próprios caminhos, tão afastados do mundo
que me rodeava. Foi preciso que,
anos depois, no movimento, para
mim decisivo, do Teatro do Estudante de Pernambuco, Hermilo
Borba Filho me desse uma peça
de García Lorca para que eu descobrisse que era possível atingir o
tom eterno da tradição através de
minha circunstância. A semelhança entre a Espanha, Portugal
e o Nordeste, a tradição ibérica e a
mediterrânea começaram a me
obsedar. E a primeira peça que
consegui escrever ("Uma Mulher
Vestida de Sol") foi resultado
dessas duas influências principais: a do romance nordestino e a
de García Lorca" (pág. 482).
"Uma Mulher Vestida de Sol"
ganhara o primeiro prêmio num
concurso, contra o voto de Gilberto Freyre. Eu explicava esse voto
contrário dele "por dois fatos que
nos separam: em primeiro lugar,
Gilberto Freyre é antes um romântico do que um clássico; ele
próprio considera o Movimento
Regional-Tradicionalista como
"neo-romântico'; depois, ele é um
homem da zona do açúcar, visceralmente ligado às formas, cores e
coisas de sua região, enquanto eu
sou um sertanejo da civilização
do couro. E, apesar de suas tendências apolíneas à harmonia, ele
nunca pôde esconder, por exemplo, que simpatiza mais com Joaquim Nabuco do que com Euclydes da Cunha, em quem viu, com
muito acerto, um sertanejo e a
quem, carinhosamente, censura
por comer à força, sendo um asceta de cara fradesca, como todo
sertanejo. Ora, minha peça, sertaneja, com tendências antes clássicas (e barrocas) do que românticas, concorria com outra da Zona-da-Mata, em que o sexualismo
dos Engenhos estava presente.
(...) E, entre duas experiências falhadas, é natural que Gilberto
Freyre tenha se inclinado por
aquela que aflorava seu mundo,
novamente impaciente de vê-lo
vivificado e eternizado nas formas
da Arte".
Dizia eu que "Uma Mulher
Vestida de Sol" era "uma experiência falhada" porque sua versão, julgada por Gilberto Freyre,
fora a primeira, que àquela altura
eu já renegara. E continuava, falando da influência por mim recebida do Movimento Regionalista:
"Como Gilberto Freyre, mais do
que ele talvez, antipatizo terrivelmente com o Movimento Modernista (ou melhor, com a corrente
de Oswald de Andrade). Minha
simpatia, no âmbito desse movimento, vai mais para aqueles que
renegaram o fundamental das
idéias de 22, como acontece, a
meu ver, com Carlos Drummond
de Andrade. Eu detesto aquilo
que se chama "arte de vanguarda':
não dá dois anos, a arte de vanguarda vira retaguarda. Essa aversão levou-me a procurar a tradição, voltando-me para aqueles
Mestres que são "eternamente
nossos contemporâneos" (...).
Mas onde rastrear os elementos
que nos permitissem assimilar-lhes os segredos em formas nossas?".
(Continua na próxima semana.)
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