São Paulo, segunda-feira, 25 de setembro de 2000

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ARIANO SUASSUNA

Gilberto Freyre e Euclydes da Cunha

ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes Ariano Suassuna

O MATUTO E O SERTANEJO

No meu pequeno ensaio "Teatro, Região e Tradição", escrito em 1962 para o livro "Gilberto Freyre: sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte", afirmei que "a maior parcela de influência" que eu tinha recebido do Movimento Regionalista vinha dos romances nordestinos, cuja aparição ele deflagrou, juntamente com "A Bagaceira", de José Américo de Almeida. E explicava:
"Muitas coisas, aliás, me impeliram para esse caminho (que me aproximava principalmente de José Lins do Rego). Assim, à primeira vista, devo acentuar o fato de ser filho de família sertaneja, criado em Fazendas e numa pequena cidade do Sertão paraibano, Taperoá. O acaso também desempenha um papel importante em nossa formação: meu Pai gostava muito da Literatura popular nordestina. Leonardo Mota era seu hóspede de vez em quando, e ouviam juntos os Cantadores que o escritor cearense levava a nossa casa, juntamente com seus livros e cantigas anotadas. Mal aprendi a ler, descobri esse material e decorei alguns dos romances, autos e moralidades que ainda hoje são meus temas obsessionais em Teatro. Também Monteiro Lobato, cujos livros infantis foram uma grande felicidade da minha infância e que procurei depois, decepcionando-me um pouco com suas limitações, mas que não deixou de me chamar a atenção para o fato de que era errado repetir servilmente aqui os modelos europeus de má qualidade. Que salientava também (como Gilberto Freyre) a riqueza de nossas folhagens, indicando-as aos artistas como ponto-de-partida para uma Arte nossa. Mas, para mim, o romance nordestino tinha uma importância toda especial. A revelação que tive dele, também na infância, deu-me um caráter de maravilhoso ao cotidiano; ainda mais porque eu conhecia Itabaiana e Pilar (cidades tão presentes no universo de José Lins do Rego); morava por ali, eram nomes familiares às conversas que eu ouvia. Um romance passado naquele lugar mergulhava de repente em tudo aquilo que eu conhecia no universo fascinante da Arte, cujo papel de "solenizar a vida" aqui se tornava efetivo, diante de meus olhos" (pág. 481/482).
Depois daí, lembrando minhas primeiras tentativas no campo do Teatro, anotava eu, na pessoa e na obra de Gilberto Freyre, alguns aspectos que me separavam do Movimento Regionalista:
"Eu descobrira o teatro de Ibsen, numa velha tradução francesa pertencente a um médico inteligente e culto de Taperoá (o Doutor Abdias Campos). Deslumbrado, tentei escrever também uma peça, logo abandonada exatamente porque o drama urbano ainda não correspondia a nenhum anseio fundamental meu e eu sentia algo de falso e mentiroso no que escrevia, tentando repetir Ibsen através de seus próprios caminhos, tão afastados do mundo que me rodeava. Foi preciso que, anos depois, no movimento, para mim decisivo, do Teatro do Estudante de Pernambuco, Hermilo Borba Filho me desse uma peça de García Lorca para que eu descobrisse que era possível atingir o tom eterno da tradição através de minha circunstância. A semelhança entre a Espanha, Portugal e o Nordeste, a tradição ibérica e a mediterrânea começaram a me obsedar. E a primeira peça que consegui escrever ("Uma Mulher Vestida de Sol") foi resultado dessas duas influências principais: a do romance nordestino e a de García Lorca" (pág. 482).
"Uma Mulher Vestida de Sol" ganhara o primeiro prêmio num concurso, contra o voto de Gilberto Freyre. Eu explicava esse voto contrário dele "por dois fatos que nos separam: em primeiro lugar, Gilberto Freyre é antes um romântico do que um clássico; ele próprio considera o Movimento Regional-Tradicionalista como "neo-romântico'; depois, ele é um homem da zona do açúcar, visceralmente ligado às formas, cores e coisas de sua região, enquanto eu sou um sertanejo da civilização do couro. E, apesar de suas tendências apolíneas à harmonia, ele nunca pôde esconder, por exemplo, que simpatiza mais com Joaquim Nabuco do que com Euclydes da Cunha, em quem viu, com muito acerto, um sertanejo e a quem, carinhosamente, censura por comer à força, sendo um asceta de cara fradesca, como todo sertanejo. Ora, minha peça, sertaneja, com tendências antes clássicas (e barrocas) do que românticas, concorria com outra da Zona-da-Mata, em que o sexualismo dos Engenhos estava presente. (...) E, entre duas experiências falhadas, é natural que Gilberto Freyre tenha se inclinado por aquela que aflorava seu mundo, novamente impaciente de vê-lo vivificado e eternizado nas formas da Arte".
Dizia eu que "Uma Mulher Vestida de Sol" era "uma experiência falhada" porque sua versão, julgada por Gilberto Freyre, fora a primeira, que àquela altura eu já renegara. E continuava, falando da influência por mim recebida do Movimento Regionalista:
"Como Gilberto Freyre, mais do que ele talvez, antipatizo terrivelmente com o Movimento Modernista (ou melhor, com a corrente de Oswald de Andrade). Minha simpatia, no âmbito desse movimento, vai mais para aqueles que renegaram o fundamental das idéias de 22, como acontece, a meu ver, com Carlos Drummond de Andrade. Eu detesto aquilo que se chama "arte de vanguarda': não dá dois anos, a arte de vanguarda vira retaguarda. Essa aversão levou-me a procurar a tradição, voltando-me para aqueles Mestres que são "eternamente nossos contemporâneos" (...). Mas onde rastrear os elementos que nos permitissem assimilar-lhes os segredos em formas nossas?".


(Continua na próxima semana.)

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