São Paulo, sábado, 25 de setembro de 2004

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"TODAS AS CASAS"

Ficção-memória reconstrói o passado e suas moradas

WILSON BUENO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Introduzido por uma oportuna epígrafe do inglês G.K. Chesterton que remete ao coração das casas e das coisas, o escritor Roberto Gomes, 59, autor, entre outros, do já clássico "Crítica da Razão Tupiniquim", (12ª edição, em 2001), está com novo livro na praça, "Todas as Casas".
Um misto de memória e romance, tendo como ponto de partida as casas nas quais viveu em sua cidade de origem, Blumenau -daquela que o abrigou recém-nascido à que assistiu aos arroubos de sua incipiente maioridade.
As casas, aqui, diga-se logo, não constituem meros espaços cênicos destinados ao papel de "suporte" das viagens romanesco-memorialísticas do autor. Pelo contrário, interagem o tempo todo com as inúmeras histórias (e estórias), criando e sendo criadas por elas; casas por onde o tempo passa esmagado, muitas vezes, pelos longo silêncios da incurável província e, outras, pela alegria modesta com que a vida vai se fazendo.
Quadros bucólicos, quase pastoris, de uma cidade e de uma existência que começa, para o romance e para o autor, em 1944, e segue até o que se supõe seja o ano de 1962, com a primeira paixão erótico-amorosa e o desencadeamento de outras paixões ainda mais contundentes, sobretudo pela literatura, além da exasperação diante do desmoronamento das primeiras ilusões.
Possivelmente esteja aí o maior mérito deste livro de Roberto Gomes ao conceber um "romance de formação" -poupou-se, e ao leitor sobretudo, do tatibitate enfadonho de uma memorialística não raro precoce e que faz, muitas vezes, a delícia de autores apressados e equivocadamente convencidos do aparente funambulismo de suas próprias biografias.
Roberto Gomes, não: urdiu, casa a casa, a "construção" de uma vida, seus planos de fuga e compasso. "Bildungsroman", sim, por que não? Embora, no livro, mesmo ao fim de sua particularíssima fabulação, a vida, ainda rigorosamente incompleta, se abra para os acidentes do destino com uma imprevisibilidade de raiz.
As 12 casas que compõem este "Todas as Casas" refletem, como num insidioso espelho, o acidentado transcorrer dos primeiros 18 anos de vida do narrador. Dispensável, aliás, a localização precisa do sujeito da narrativa. O que vale aqui são as casas, todas as casas fundando a sucessão da vida e marcando, de modo indelével, o seu ritmo.
Paralela à reconstrução memoriosa e memorável destas casas, ao menos duas importantes décadas da vida nacional (os anos 40 e 50), são recuperadas, com intensa verve e não menor malícia, pelo autor.
Assim, não ficam de fora, casa a casa, rua a rua desta Blumenau arquetípica, entre outras, os alemães imigrados ao Brasil vítimas da germanofobia provocada pela Segunda Guerra; os filmes americanos invadindo os pequenos cinemas do interior; os Buicks retardatários e os Chevrolets último tipo; a caneta Parker 51; a furiosa linotipia dos pasquins municipais; o rádio, glorioso triunfo das casas d'antanho; os primeiros LPs e os primeiros Elvis Presley.
O tempo passou? As casas do escritor Roberto Gomes que o digam; e elas dizem bem da sucessão dos dias e dos anos em nós, tocados deste quase etéreo encanto com que um homem escritor, ou não, reinventa o passado. Sobretudo se lhe move a mão o indisfarçável amor à poesia.


Wilson Bueno, escritor, é autor, entre outros livros, de "Meu Tio Roseno, A Cavalo" (editora 34) e de "Amar-te a Ti nem Sei se com Carícias" (ed. Planeta).

Todas as Casas
    Autor: Roberto Gomes Editora: Criar Edições Quanto: R$ 23 (158 págs.)



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