São Paulo, sábado, 25 de setembro de 2004

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FERNANDO GABEIRA

Todo poder ao Photoshop

Eram quase 9h da noite numa pousada de Mateiros, no Tocantins. O dia de viagem no Jalapão fora difícil por causa dos solavancos e da poeira da estrada. Mesmo assim, sentei para ler antes de dormir. "O Livreiro de Kabul", da jornalista Asne Seierstad. É um relato do cotidiano de Kabul, centrado na família do livreiro Sultan Khan.
O cansaço me fez adormecer em torno da página 90, em que a autora reproduzia as principais leis dos talebans. Acordei com um jingle de propaganda eleitoral. A pousada estava ao lado da sede do PRTB. O jingle nos pedia voto para Gumercino.
Acordei um pouco contrariado. Tinha viajado tanto para fugir da campanha eleitoral e descobria que, no interior do país, ela era muito mais intensa. Gumercino talvez tivesse um D no nome. Mas o escrivão comeu. Cartórios no Brasil costumam engolir letras. Há alguns que cospem. Mas o de Gumercino engoliu.
Se estivéssemos sob controle dos talebans, o PRTB e Gumercino seriam presos. O artigo 2º do decreto anunciado na rádio sharia. Por alguns minutos, cheguei a desejar que a região de Mateiros fosse incluída no decreto de 1996. Recuei horrorizado porque descobri que também eu estaria preso. O artigo 8º proibia a tomada de fotos e eu passaria grande parte do meu tempo produzindo imagens do Tocantins. Até mesmo a mulher que vi lavando roupa no rio, ao entrar na cidade, estaria condenada pelo artigo 12º, que proíbe isso expressamente.
Comecei então a tolerar o jingle do Gumercino. Percebi que seus atores dominavam bem a música sertaneja. Percebi que sua qualidade não era inferior a dos das metrópoles. Lembrei-me dos inúmeros trios elétricos que encontrei pelo caminho. Quase todos com jingles agradáveis, se ouvidos uma só vez.
De modo geral, isso não é possível. No hotel Serra Geral, em Natividade, o dono do trio elétrico hospedou-se ao meu lado. Natividade ficava a dois quilômetros. Mesmo assim, ele chegava e saía com o som a toda altura. Olhei pela janela e vi que quase todos os partidos, do PP ao PT, apoiavam o candidato do trio elétrico. Por que tocar música em dois quilômetros desertos de estrada?
Cheguei à conclusão de que estava diante da fragilidade profissional atribuída aos brasileiros: traficante cheira, puta goza e dono de trio elétrico curte jingles eleitorais numa estrada deserta.
O que me impressionou, desde a saída de Palmas, não foram os jingles, mas as fotos dos candidatos. São todos jovens, sorridentes, com um saudável tom de pele. Percebi como alguns instrumentos são onipresentes no Brasil. Um deles é o Photoshop. Submeter sua foto a um tratamento no Photoshop é tão banal como fazer registro da candidatura no TRE.
Eu, que já tinha uma pergunta feita, em caso de vida depois da morte, vou acrescentar mais uma à minha curiosidade no além. Até essa viagem, tudo o que queria saber é para onde vão, após a morte, as canetas, as chaves e os óculos que a gente perde ao longo da passagem pela Terra.
Agora quero saber para onde vão as rugas, pés-de-galinha e manchas que os marqueteiros escondem na propaganda eleitoral.
Errei ao supor que as campanhas no interior não são intensas. Cidades pequenas vivem do fundo de municípios. A batalha eleitoral é também em torno da grande fonte de emprego, que é a prefeitura.
Única diferença: não há programa eleitoral gratuito.
Amigos que assistem ao programa disseram que pode ser dividido em duas partes nas grandes cidades. A primeira é Neverlândia: uns candidatos que você não acredita que existam na vida real. A segunda é a Umseteumlândia, aqueles que claramente estão querendo melhorar de vida.
Rompi com meu candidato a vereador antes da partida. Ele é da Neverlândia e nada no Flamengo. Pediu meu voto delicadamente. Lembrei-me que ele só nada de costas, assim mesmo com uma lentidão que assombra as crianças na beira da piscina. Disse-lhe que só votaria nele se adotasse o slogan: "Nadando de costas pelo Brasil". Ele achou que era sacanagem. Tentei uma negociação: nadando de costas pelo município? Sem acordo.
No dia seguinte, na cachoeira da Formiga, vi um senhor de chapéu. Quando fazia sua foto, o visor mostrava, um pouco acima da cabeça, um cartaz que dizia Martins de novo. Martins é o prefeito que ganhou uma ambulância e foi preso com ela num bar, no dia mesmo em que a retirou.
Não ouvi nenhum jingle de Martins na noite anterior. Digo isso a seu favor. Como diria diante do espelho ao fazer a barba matinal: se valesse o artigo 3º do taleban, seria preso até que minha barba tivesse o comprimento de um punho fechado.
Com as fotos proibidas, barba inexistente e cabelo de estilo ocidental, seria enquadrado em vários artigos do código taleban. Só escaparia talvez do que proíbe tocar bateria.
Deveria agradecer ao nosso regime e pedir desculpas ao dono do trio elétrico pelos palavrões que gritei na escuridão da noite. Afinal, ninguém é perfeito: todo poder ao Photoshop.


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