São Paulo, sexta, 25 de setembro de 1998

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País fictício revela embates da história

Luiz Carlos Murauskas/Folha Imagem
Hilário Franco Júnior, que estuda utopias da Idade Média


SYLVIA COLOMBO
Editora-assistente da Ilustrada

Imagine um país onde pães disputam entre si o prazer de serem devorados pelos homens e os peixes invadem casas, fritam-se sozinhos e se oferecem como refeição.
Nesse lugar, as cotovias, já assadas, voam diretamente em direção às bocas humanas, enquanto rios de vinho tinto singram os campos, onde também chovem pudins.
Esta é a cocanha, uma utopia que foi concebida no imaginário coletivo por várias sociedades ao longo da história, cada uma formulando-a segundo suas peculiaridades... e seu cardápio (veja quadro abaixo).
Nesse ideal coletivo, os alimentos são abundantes, não há trabalho, todos são eternamente jovens e a liberdade sexual é ilimitada.
A cocanha enquanto ideal existe desde a pré-história -há registros que mostram que no Mesolítico os homens pintavam figuras de animais que não podiam comer.
Pode ser vista, também, nas artes plásticas, nas telas "O País da Cocanha" e "Combate entre Carnaval e Quaresma", de Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569) e "O Jardim das Delícias" e "A Nave dos Loucos", de Hieronymus Bosch (1450?-1516). Os dois pintores registraram uma idéia que circulava na tradição oral do tempo em que viveram.
O professor de história medieval da Universidade de São Paulo (USP), Hilário Franco Júnior, está lançando o livro "Cocanha - A História de um País Imaginário" -que chega amanhã às livrarias- em que analisa a genealogia dessa utopia por meio de um poema francês da Idade Média.
Franco Júnior é um adepto da história das mentalidades e já lançou os livros "As Utopias Medievais" (Brasiliense, 1992) e "A Eva Barbada" (Edusp, 1996).
A historiografia sobre o tema da cocanha é muito pequena. "Os historiadores pensam que o assunto é muito infantil, por isso não lhe dão importância", disse Franco Júnior, em entrevista à Folha.
O livro parte da análise do "Fabliau de Cocaingne", poema escrito no século 13, em 188 versos, de um autor desconhecido. "Acredito que ele tenha sido um goliardo, que tinha instrução e conhecia elementos de diversas culturas", diz.
Os goliardos eram estudantes que se preparavam para a vida eclesiástica. Como ele estava ingressando na Igreja, conhecia seus meandros e promoveu, nos versos, diversas críticas veladas ao cristianismo, por meio do uso de diversos elementos pagãos.
O poeta se utilizou de textos antigos, como o Velho Testamento e referências da cultura muçulmana e céltica. Seus versos são satíricos e apresentam-se numa linguagem bastante acessível.
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Fome medieval
A Europa viveu, durante a Alta Idade Média, um período crônico de fome, havendo inclusive o registro de casos de canibalismo e de ingestão de terra e insetos.
Nesse momento começou a se concretizar no imaginário coletivo o ideal da existência de um lugar onde a abundância de alimentos sepultaria o que era então o maior pesadelo dos homens. Ou seja, o sonho da cocanha tomou forma no pensamento coletivo para superar uma dificuldade concreta.
Quando o poema é escrito, essa situação já não é mais tão crítica, ainda que em muitos lugares a população pobre sofresse de uma carência quase total de alimentos.
"Existe um tempo, na longa duração histórica, para que um fenômeno marque as consciências humanas. O tempo que se passou do período mais agudo da fome até aquele em que o poeta escreve o "fabliau' representa o trecho em que aquele fato se firmou no imaginário comum."
Para o historiador, a cocanha nunca existiu como um projeto político. Assim, não pode ser comparada à "República", de Platão ou ao "Manifesto Comunista", de Marx.
Na tentativa de confortar o espírito com o humor do texto, a utopia ameniza o sofrimento nas três formas clássicas estabelecidas por Sigmund Freud: a do corpo, contrapondo a abundância alimentar à fome; a que é causada pelo mundo externo, questionando o poder concreto do cristianismo; e a que é causada pela relação com os outros, trazendo a idéia da liberdade sexual.
"Cada grupo formata a utopia de acordo com as peculiaridades de cada contexto, mas acredito que a utopia é inerente ao homem".
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Crítica ao cristianismo
O "Fabliau de Cocaingne" satirizou o problema da fome e, ao mesmo tempo, fez uma crítica ao poder religioso, que não satisfazia às necessidades mais prementes da sociedade medieval.
"O humor era a única forma de expressar insatisfação naquela sociedade rígida, em que a Igreja controlava a vida cotidiana e cultural das pessoas."
O poema traz também especificidades formais relativas ao período em que foi escrito. A literatura medieval, diferente da que o Ocidente contemporâneo conheceria posteriormente, era construída a cada leitura, em voz alta, de um texto.
Daí o que o autor chama de intervocalidade, ou seja, a possibilidade de perceber na estrutura do texto referências, citações e imitações de textos de outras culturas.
Franco Júnior lista diversas fontes de elementos encontrados no texto do jovem goliardo. Os temas alimentares são de inspiração céltica. As referências monetárias citam moedas árabes, enquanto a idéia da juventude eterna é localizada no culto pagão às fontes, que subsistira à inserção do cristianismo.
Depois de analisar o poema medieval, Franco Júnior parte para a enumeração de cocanhas detectadas nos séculos seguintes na Europa.
Apresenta, por fim, superficialmente, um cordel brasileiro, "Viagem a São Saruê", de 1947. Nesse texto aparece a mesma projeção de um lugar ideal onde a comida é abundante. "Mais uma prova de que a utopia faz parte do homem, em qualquer momento histórico", completa.
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Livro: Cocanha - A História de um País Imaginário
Autor: Hilário Franco Júnior
Lançamento: Companhia das Letras
Preço: R$ 27 (313 págs.)




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