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MARCELO COELHO
Associações livres em torno do divã
A exposição sobre Freud,
em cartaz no Masp até dia
17 de dezembro, traz coisas interessantes sobre a história da psicanálise no Brasil e sobre as relações do modernismo com o pensamento freudiano.
Reuniu-se ali material suficiente para uma boa dezena de ensaios. Seria quase o caso de dizer
que é uma exposição mais para
ser "lida" do que para simplesmente passear por ela.
Mas a grande atração da mostra, como se sabe, é o famoso divã
de Freud -e chega a ser uma pena que todo o trabalho de pesquisa feito na preparação do evento
fique em segundo plano diante do
apelo, puramente fetichista, de
topar com esse objeto.
Além do divã, estão ali a escrivaninha, as estatuetas, a poltrona... é todo o consultório do vetusto doutor que temos diante dos
olhos, causando a estranha impressão de que aqueles móveis estão como que empalhados; são
parentes do cadáver de Lênin e da
velhinha de "Psicose".
Faço algumas associações livres
em torno do divã.
Foi amplamente noticiado,
aliás, que o que estamos vendo
nesta mostra não é o verdadeiro
divã de Freud. Pior que isso, não
estamos vendo divã nenhum, pois
aquilo que deveria ser o divã, e
não é, está de todo modo coberto
por um tapete persa -este, sim,
autêntico: é sobre esse tapete que
Freud se deitou quando morreu.
Só nesse jogo de esconde-esconde, no qual o objeto que procuramos está oculto ("debaixo do tapete"), e, mesmo se tirássemos o
tapete, não o encontraríamos, há
como que uma psicanálise condensada. Todo o quiproquó meio
cômico, meio policial, do contêiner que deveria chegar ao Brasil
para a exposição e extraviou-se
na Jamaica, também se presta a
uma interpretação freudianizante. O objeto verdadeiro está perdido; representamos apenas, laboriosa e insistentemente, a comédia de sua substituição.
Outra coisa estranha é que os
móveis de Freud estão dentro de
uma grande caixa de vidro climatizada. Não é só a imagem do "cadavérico", mas também o ar de
"instalação" -de obra de arte
contemporânea num museu-
que se reforça com isso.
O artista britânico Damien
Hirst, na mostra "Sensation", pôs
um tubarão embalsamado
boiando dentro de uma caixa de
vidro; o divã, surpreendentemente pequeno, parece também boiar
no vazio deixado pelos pacientes
de Freud, ou melhor, no vazio dos
sonhos que eles não conseguiam
recordar.
Dizem que quando Freud visitou os Estados Unidos, declarou a
um jornalista que estava trazendo "a peste" para os americanos.
O organizador da exposição no
Brasil, Leopold Nosek, esclarece
que a frase nunca foi dita por
Freud, e, sim, por Jung. De qualquer modo, a caixa de vidro também parece ser uma providência
contra a contaminação.
"Proibido tocar" -é o que se lê
nos museus; mas a proibição também vale em casos de doença contagiosa; e a polícia, por sua vez,
exige isso nos lugares onde ocorreu um assassinato. Entre a medicina e a investigação policial, o
divã se congela numa atitude suspeita.
E não há coisa mais suspeita do
que um tapete persa servindo de
colcha ou cobertor. Os pacientes
se deitavam num tapete desses?
Nada remeteria mais ao mundo
infantil -onde estamos sempre
mais perto do chão.
Mas é sobretudo o lado misterioso, oriental do freudismo que
parece representado nesse tapete.
No século 18, Viena quase foi invadida pelos turcos. O fascínio de
Freud pela arte egípcia, da qual
vemos exemplares na escrivaninha, também nos remete a esse
"desconhecido", à sombria opulência dos labirintos e arabescos,
dos sarcófagos e das maldições
que trazemos na mente.
Meio brega, a frase acima. Mas
quanto mau gosto nas decorações
orientais que atulhavam os salões
burgueses do século 19! E é conhecida a mania de cobrir com panos, cortinas e tapetes tudo o que
fosse possível. Há uma foto do
poeta austríaco Hugo von Hoffmanstahl, contemporâneo de
Freud, em que vemos ao fundo
uma parede coberta por uma cortina e em cima da cortina (!) está
pregado um quadro.
Já está na hora de citar os textos
de Walter Benjamin sobre o assunto. "Muito mais interessante
que o Oriente paisagístico, nos romances policiais, é aquele exuberante Oriente em seus interiores:
o tapete persa e a otomana, o candeeiro suspenso e a nobre adaga
caucasiana. Atrás das pesadas tapeçarias o dono da casa celebra
suas orgias com os papéis da Bolsa, pode sentir-se como mercador
oriental, como paxá corrupto, até
que aquela adaga no pingente de
prata sobre o divã, uma bela tarde, põe fim à sua sesta e a ele próprio."
Em outro texto, Benjamin identifica as quinquilharias do interior burguês à necessidade que o
dono da casa tem de "deixar vestígios". A irritação do dono da casa quando alguma peça de decoração se quebrava seria talvez "a
reação do homem a quem apagam o vestígio de seus dias na
Terra". A palavra "vestígios" no
texto de Benjamin talvez pudesse
ser substituída, no contexto freudiano, por "sintoma".
Walter Benjamin propõe que se
abandone essa decoração burguesa em favor de uma "cultura
do vidro", uma casa sem interiores sufocantes. De certo modo, isso ocorreu. Tudo, hoje, se expõe e
se deixa devassar, num exibicionismo e num voyeurismo completos.
Esse exibicionismo, entretanto,
nada tem a ver com a transparência idealizada por Benjamin. É
como se, em vez da antiga neurose, da velha histeria vitoriana, um
falso desrecalque, igualmente patológico, estivesse em curso nos
indivíduos modernos. Dentro da
caixa de vidro, o divã de Freud está à espera.
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