São Paulo, quarta-feira, 25 de outubro de 2000

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MARCELO COELHO
Associações livres em torno do divã

A exposição sobre Freud, em cartaz no Masp até dia 17 de dezembro, traz coisas interessantes sobre a história da psicanálise no Brasil e sobre as relações do modernismo com o pensamento freudiano.
Reuniu-se ali material suficiente para uma boa dezena de ensaios. Seria quase o caso de dizer que é uma exposição mais para ser "lida" do que para simplesmente passear por ela.
Mas a grande atração da mostra, como se sabe, é o famoso divã de Freud -e chega a ser uma pena que todo o trabalho de pesquisa feito na preparação do evento fique em segundo plano diante do apelo, puramente fetichista, de topar com esse objeto.
Além do divã, estão ali a escrivaninha, as estatuetas, a poltrona... é todo o consultório do vetusto doutor que temos diante dos olhos, causando a estranha impressão de que aqueles móveis estão como que empalhados; são parentes do cadáver de Lênin e da velhinha de "Psicose".
Faço algumas associações livres em torno do divã.
Foi amplamente noticiado, aliás, que o que estamos vendo nesta mostra não é o verdadeiro divã de Freud. Pior que isso, não estamos vendo divã nenhum, pois aquilo que deveria ser o divã, e não é, está de todo modo coberto por um tapete persa -este, sim, autêntico: é sobre esse tapete que Freud se deitou quando morreu.
Só nesse jogo de esconde-esconde, no qual o objeto que procuramos está oculto ("debaixo do tapete"), e, mesmo se tirássemos o tapete, não o encontraríamos, há como que uma psicanálise condensada. Todo o quiproquó meio cômico, meio policial, do contêiner que deveria chegar ao Brasil para a exposição e extraviou-se na Jamaica, também se presta a uma interpretação freudianizante. O objeto verdadeiro está perdido; representamos apenas, laboriosa e insistentemente, a comédia de sua substituição.
Outra coisa estranha é que os móveis de Freud estão dentro de uma grande caixa de vidro climatizada. Não é só a imagem do "cadavérico", mas também o ar de "instalação" -de obra de arte contemporânea num museu- que se reforça com isso.
O artista britânico Damien Hirst, na mostra "Sensation", pôs um tubarão embalsamado boiando dentro de uma caixa de vidro; o divã, surpreendentemente pequeno, parece também boiar no vazio deixado pelos pacientes de Freud, ou melhor, no vazio dos sonhos que eles não conseguiam recordar.
Dizem que quando Freud visitou os Estados Unidos, declarou a um jornalista que estava trazendo "a peste" para os americanos. O organizador da exposição no Brasil, Leopold Nosek, esclarece que a frase nunca foi dita por Freud, e, sim, por Jung. De qualquer modo, a caixa de vidro também parece ser uma providência contra a contaminação.
"Proibido tocar" -é o que se lê nos museus; mas a proibição também vale em casos de doença contagiosa; e a polícia, por sua vez, exige isso nos lugares onde ocorreu um assassinato. Entre a medicina e a investigação policial, o divã se congela numa atitude suspeita.
E não há coisa mais suspeita do que um tapete persa servindo de colcha ou cobertor. Os pacientes se deitavam num tapete desses? Nada remeteria mais ao mundo infantil -onde estamos sempre mais perto do chão.
Mas é sobretudo o lado misterioso, oriental do freudismo que parece representado nesse tapete. No século 18, Viena quase foi invadida pelos turcos. O fascínio de Freud pela arte egípcia, da qual vemos exemplares na escrivaninha, também nos remete a esse "desconhecido", à sombria opulência dos labirintos e arabescos, dos sarcófagos e das maldições que trazemos na mente.
Meio brega, a frase acima. Mas quanto mau gosto nas decorações orientais que atulhavam os salões burgueses do século 19! E é conhecida a mania de cobrir com panos, cortinas e tapetes tudo o que fosse possível. Há uma foto do poeta austríaco Hugo von Hoffmanstahl, contemporâneo de Freud, em que vemos ao fundo uma parede coberta por uma cortina e em cima da cortina (!) está pregado um quadro.
Já está na hora de citar os textos de Walter Benjamin sobre o assunto. "Muito mais interessante que o Oriente paisagístico, nos romances policiais, é aquele exuberante Oriente em seus interiores: o tapete persa e a otomana, o candeeiro suspenso e a nobre adaga caucasiana. Atrás das pesadas tapeçarias o dono da casa celebra suas orgias com os papéis da Bolsa, pode sentir-se como mercador oriental, como paxá corrupto, até que aquela adaga no pingente de prata sobre o divã, uma bela tarde, põe fim à sua sesta e a ele próprio."
Em outro texto, Benjamin identifica as quinquilharias do interior burguês à necessidade que o dono da casa tem de "deixar vestígios". A irritação do dono da casa quando alguma peça de decoração se quebrava seria talvez "a reação do homem a quem apagam o vestígio de seus dias na Terra". A palavra "vestígios" no texto de Benjamin talvez pudesse ser substituída, no contexto freudiano, por "sintoma".
Walter Benjamin propõe que se abandone essa decoração burguesa em favor de uma "cultura do vidro", uma casa sem interiores sufocantes. De certo modo, isso ocorreu. Tudo, hoje, se expõe e se deixa devassar, num exibicionismo e num voyeurismo completos.
Esse exibicionismo, entretanto, nada tem a ver com a transparência idealizada por Benjamin. É como se, em vez da antiga neurose, da velha histeria vitoriana, um falso desrecalque, igualmente patológico, estivesse em curso nos indivíduos modernos. Dentro da caixa de vidro, o divã de Freud está à espera.



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