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GASTRONOMIA
Domando os ingredientes com palavras
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Comecei a comprar livros de
receitas aos 18 anos, numa ignorância culinária de dar dó. E,
como não tínhamos quase nada
no setor de gastronomia além de
uns três compêndios clássicos, a
meta das moçoilas eram revistas
americanas, glamourosíssimas.
Se o nome da receita não declarasse sua essência, dava-se um
perfeito mergulho no escuro.
"Brenda's Delight", por exemplo.
Podíamos acabar com um bolo de
fubá ou omelete de milho ou suflê
massudo. Ninguém sabia do que
Brenda era capaz.
E colecionávamos receitas. Centenas, milhares. Sem nenhum discernimento.
Acho interessante que a última
coisa que Virginia Woolf escreveu, antes de caminhar para o riacho com pedregulhos nos bolsos e
morrer, foi a seguinte: "E, agora,
com um certo prazer vejo que são
sete horas e que devo preparar o
jantar. Haddock e salsichas. Acho
que é verdade que se adquire um
certo poder sobre a salsicha e o
haddock escrevendo seus nomes."
Talvez fosse isso. O jeito de se
domar o ingrediente era prendê-lo na malha fina da palavra, afastar as dificuldades da técnica com
a armadilha do "por escrito".
Foi um custo entender que as
informações novas, as comidas
que apareciam, os utensílios, os
salmões, as chalotas, os vinagres,
os mangaritos, as beldroegas, a farinha-de-pau, só podiam ser assimilados se conseguíssemos incorporá-los à nossa maneira de ser e
cozinhar, entendê-los bem, saber
usá-los, até chegar à simplicidade.
Depois de muito acerto e erro, o
cozinheiro se define e constrói
uma cozinha pessoal, ajustada a
seu gosto, temperamento e talento. Era rasgar o menu preconcebido e comprar o que apetecesse,
esvaziar a sacola na mesa da cozinha e inventar. Inventar era o melhor da coisa, uma criação que vinha informada pela longa peregrinação por todas as receitas do
mundo.
Toda essa introdução para chegar a dois livros que foram lançados juntos, ainda neste mês. São
livros de receitas e quero resenhá-los. Como? A receita é a transmissão de um conhecimento prático.
Para avaliá-la tenho que experimentá-la. Ao todo, no caso, são
cerca de 350. Dando 45 minutos
para a elaboração de cada uma,
gastaria 260 horas. Gastando cinco horas por dia para testá-las, levaria 52 dias, sem começar a escrever a resenha.
É por isso que, quando se escreve sobre livros de receitas, há o perigo de se enganar, ou há que se
escrever sobre a confiabilidade
dos autores. É o caso destes dois
livros. Posso falar deles com certeza absoluta porque sou amiga das
autoras. Os dois livros, eu os vi
crescendo na cabeça delas. Frutos
de experiência e assimilação.
Vejamos o primeiro, "Receitas
para Todo Dia e para os Outros
Também", de Wilma Kovesi. Wilma é a dona da escola de culinária
que leva seu nome e que vem ensinando a cozinhar há tanto tempo,
trazendo os melhores chefs para
suas salas. É aquela que cozinha e
escreve muito bem, é competente,
sabida, educada, informada, inteligente e espirituosa. Querem
mais? Generosa. Original, mas
não radical, maracujá no peixe e
excessos de gengibre, já bradava
contra eles no começo da nouvelle cuisine.
Sua experiência de professora e
de dona-de-casa está toda nesse
livro despretensioso, exato, que
vai agradar a gregos e troianos
por ter o tal do estilo, por receitas
que dão certo experimentadas à
exaustão. Só espero que no próximo não se limite às receitas. Wilma tem um enorme talento de escritora e queremos anedotas e
viagens e histórias com sua verve.
Combinado?
O outro livro é de Silvia Percussi
e o nome é "Funghi - Cozinhando
com Cogumelos". São 80 receitas
da belíssima, terna e doce Silvia,
que comanda a Vinheria Percussi
ao lado do irmão Lamberto, o
muito simpático Lamberto, companheiro da irmã na empreitada
da Vinheria.
O livro espelha um dos festivais
anuais que eles levam a cabo no
restaurante. Gosto de livros com
um só tema, vai-se a fundo no assunto.
Silvia começa com crostini,
bruschetti, crostoni, frittatine,
passa pelas saladas, brodos, carnes e aves, e as massas, sempre
com os funghi, as explicações e
uma sugestão de vinho dada pelo
pai, o enólogo Percussi. Podemos
repetir seu festival em casa.
Um dia, já faz tempo, de brincadeira, durante um jantar, resolvemos imaginar a quem clonaríamos se fosse possível escolher. Silvia clonaria a mãe e o pai. Grande,
essa família Percussi, na autenticidade da cozinha italiana, no amor
que os une e que compartilham
com os amigos, de coração aberto
e boa e autêntica e simples cozinha italiana.
E-mail: ninahort@uol.com.br
RECEITAS PARA TODO DIA E PARA OS
OUTROS TAMBÉM. De Wilma Kovesi.
Editora DBA. 268 págs. R$ 35.
FUNGHI - COZINHANDO COM
COGUMELOS. De Silvia Percussi. Editora
Keila & Rosenfeld. 102 págs. R$ 29.
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