São Paulo, quinta-feira, 25 de outubro de 2001

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GASTRONOMIA

Domando os ingredientes com palavras

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Comecei a comprar livros de receitas aos 18 anos, numa ignorância culinária de dar dó. E, como não tínhamos quase nada no setor de gastronomia além de uns três compêndios clássicos, a meta das moçoilas eram revistas americanas, glamourosíssimas.
Se o nome da receita não declarasse sua essência, dava-se um perfeito mergulho no escuro. "Brenda's Delight", por exemplo. Podíamos acabar com um bolo de fubá ou omelete de milho ou suflê massudo. Ninguém sabia do que Brenda era capaz.
E colecionávamos receitas. Centenas, milhares. Sem nenhum discernimento.
Acho interessante que a última coisa que Virginia Woolf escreveu, antes de caminhar para o riacho com pedregulhos nos bolsos e morrer, foi a seguinte: "E, agora, com um certo prazer vejo que são sete horas e que devo preparar o jantar. Haddock e salsichas. Acho que é verdade que se adquire um certo poder sobre a salsicha e o haddock escrevendo seus nomes."
Talvez fosse isso. O jeito de se domar o ingrediente era prendê-lo na malha fina da palavra, afastar as dificuldades da técnica com a armadilha do "por escrito".
Foi um custo entender que as informações novas, as comidas que apareciam, os utensílios, os salmões, as chalotas, os vinagres, os mangaritos, as beldroegas, a farinha-de-pau, só podiam ser assimilados se conseguíssemos incorporá-los à nossa maneira de ser e cozinhar, entendê-los bem, saber usá-los, até chegar à simplicidade.
Depois de muito acerto e erro, o cozinheiro se define e constrói uma cozinha pessoal, ajustada a seu gosto, temperamento e talento. Era rasgar o menu preconcebido e comprar o que apetecesse, esvaziar a sacola na mesa da cozinha e inventar. Inventar era o melhor da coisa, uma criação que vinha informada pela longa peregrinação por todas as receitas do mundo.
Toda essa introdução para chegar a dois livros que foram lançados juntos, ainda neste mês. São livros de receitas e quero resenhá-los. Como? A receita é a transmissão de um conhecimento prático. Para avaliá-la tenho que experimentá-la. Ao todo, no caso, são cerca de 350. Dando 45 minutos para a elaboração de cada uma, gastaria 260 horas. Gastando cinco horas por dia para testá-las, levaria 52 dias, sem começar a escrever a resenha.
É por isso que, quando se escreve sobre livros de receitas, há o perigo de se enganar, ou há que se escrever sobre a confiabilidade dos autores. É o caso destes dois livros. Posso falar deles com certeza absoluta porque sou amiga das autoras. Os dois livros, eu os vi crescendo na cabeça delas. Frutos de experiência e assimilação.
Vejamos o primeiro, "Receitas para Todo Dia e para os Outros Também", de Wilma Kovesi. Wilma é a dona da escola de culinária que leva seu nome e que vem ensinando a cozinhar há tanto tempo, trazendo os melhores chefs para suas salas. É aquela que cozinha e escreve muito bem, é competente, sabida, educada, informada, inteligente e espirituosa. Querem mais? Generosa. Original, mas não radical, maracujá no peixe e excessos de gengibre, já bradava contra eles no começo da nouvelle cuisine.
Sua experiência de professora e de dona-de-casa está toda nesse livro despretensioso, exato, que vai agradar a gregos e troianos por ter o tal do estilo, por receitas que dão certo experimentadas à exaustão. Só espero que no próximo não se limite às receitas. Wilma tem um enorme talento de escritora e queremos anedotas e viagens e histórias com sua verve. Combinado?
O outro livro é de Silvia Percussi e o nome é "Funghi - Cozinhando com Cogumelos". São 80 receitas da belíssima, terna e doce Silvia, que comanda a Vinheria Percussi ao lado do irmão Lamberto, o muito simpático Lamberto, companheiro da irmã na empreitada da Vinheria.
O livro espelha um dos festivais anuais que eles levam a cabo no restaurante. Gosto de livros com um só tema, vai-se a fundo no assunto.
Silvia começa com crostini, bruschetti, crostoni, frittatine, passa pelas saladas, brodos, carnes e aves, e as massas, sempre com os funghi, as explicações e uma sugestão de vinho dada pelo pai, o enólogo Percussi. Podemos repetir seu festival em casa.
Um dia, já faz tempo, de brincadeira, durante um jantar, resolvemos imaginar a quem clonaríamos se fosse possível escolher. Silvia clonaria a mãe e o pai. Grande, essa família Percussi, na autenticidade da cozinha italiana, no amor que os une e que compartilham com os amigos, de coração aberto e boa e autêntica e simples cozinha italiana.

E-mail: ninahort@uol.com.br



RECEITAS PARA TODO DIA E PARA OS OUTROS TAMBÉM. De Wilma Kovesi. Editora DBA. 268 págs. R$ 35.

FUNGHI - COZINHANDO COM COGUMELOS. De Silvia Percussi. Editora Keila & Rosenfeld. 102 págs. R$ 29.


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